Arma eléctrica foi usada em recluso com o aval da direcção da cadeia

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Imagem retirada do vídeo que mostra o recluso prestes a ser assistido

A mesma leitura não é partilhada pela Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), que se refere à ocorrência como um acto que pode indiciar a realização de "experiências".

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A mesma leitura não é partilhada pela Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), que se refere à ocorrência como um acto que pode indiciar a realização de "experiências".

Ainda assim, a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) participou a situação ao Ministério Público, a quem remeteu o inquérito com proposta de abertura de um processo disciplinar. O PÚBLICO sabe que a Procuradoria-Geral Distrital do Porto encaminhou também o caso para a Polícia Judiciária, que vai agora iniciar as investigações. Um segundo inquérito ao caso corre termos na Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça.

Fonte da DGSP garantiu ontem ao PÚBLICO que o disparo da arma eléctrica contra um recluso foi feito com o conhecimento do chefe dos guardas e da directora da cadeia, Elisabete Dias, que não pôde prestar declarações por não estar autorizada. Concluído o inquérito interno, diz a mesma fonte, tudo aponta para que os guardas intervenientes sejam ilibados de qualquer acusação do foro criminal.

"Não há violência explícita, apenas a utilização de uma linguagem mais agreste mas que é perfeitamente justificada. É dada a oportunidade ao preso de evitar o disparo, mas ele recusa obedecer. O próprio disparo é feito para a zona indicada, as costas, evitando-se o risco de atingir órgãos mais sensíveis. E logo de seguida o preso é assistido. A não ser que existam outras imagens, não há qualquer irregularidade na actuação dos guardas", acrescentou.

No vídeo divulgado pelo PÚBLICO vislumbra-se a chegada dos guardas à cela onde se encontra o detido. No chão e nas paredes estão espalhados excrementos e comida. O homem, só em cuecas, diz aos guardas que não quer limpar o que sujou. Mandam-no levantar e, de seguida, é atingido, nas costas, com um único disparo de Taser. Esse disparo, que condiciona a coordenação muscular durante cinco segundos, permite depois que os guardas o algemem e o levem para uma dependência contígua, onde lhe são retirados os dardos eléctricos e ministrado um pequeno curativo.

Só um guarda visado

Para o sociólogo António Pedro Dores, um dos responsáveis da ACED, o acontecimento de Paços de Ferreira pode ser entendido como um castigo. "Nas prisões portuguesas, os castigos corporais não são invulgares. O que é invulgar é a presença do Grupo de Intervenção de Segurança Prisional [GISP], a utilização de armas eléctricas e a filmagem", adiantou o mesmo responsável, sublinhando que o caso pode configurar a realização de uma experiência.

O inquérito determinado pela direcção da DGSP - que tomou conhecimento do caso após ter recebido uma denúncia anónima por carta - visou apenas um dos guardas: aquele que utilizou a arma. O guarda visado tem, de resto, um advogado responsável pela sua defesa. De acordo com elementos do Corpo da Guarda Prisional, trata-se de um elemento com formação específica na utilização de armas eléctricas, sendo considerado um dos melhores efectivos na realização de tarefas delicadas, como são os casos das escoltas a arguidos de risco.

Apesar de haver organizações, como a ACED, que consideram ilegal a utilização de armas eléctricas dentro das cadeias, esse não é o entendimento da DGSP. Em comunicado, este organismo do Ministério da Justiça refere que "a utilização de meios coercivos nos serviços prisionais está prevista no Código de Execução de Penas e dispõe de um regulamento próprio. O processo que agora corre visa, entre outros assuntos, apurar as circunstâncias e a adequação da intervenção no terreno".

O regulamento próprio aludido pela DGSP é da responsabilidade da direcção presidida pelo actual director-geral dos serviços, Rui Sá Gomes. Trata-se de um documento que demorou cerca de dois anos a ser ultimado e que veio legitimar a utilização nas cadeias de algum armamento anteriormente interdito. Elaborado com base em pareceres de diversos técnicos dos serviços prisionais e de juristas, o documento prevê a utilização das armas eléctricas e também autoriza que os guardas possam voltar a transportar, nas cadeias, bastões e gás pimenta.

A primeira vez que uma arma eléctrica foi utilizada numa cadeia portuguesa foi em 2006, no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz. Nessa ocasião, as armas eléctricas foram utilizadas por uma equipa especial da GNR chamada para tentar deter dois reclusos que, querendo fugir, haviam tomado como refém o padre da cadeia, mantendo-o sob ameaça de morte na capela da prisão.

Quando dos acontecimentos de Pinheiro da Cruz, a DGSP ainda não possuía nenhuma das suas actuais 30 armas. As mesmas chegaram cerca de dois anos mais tarde, estando actualmente distribuídas pelos 17 estabelecimentos prisionais centrais existentes no país e por algumas cadeias especiais, constituindo as restantes uma reserva.

A utilização das armas eléctricas só é permitida aos polícias que receberam formação específica para o efeito. Actualmente, a DGSP tem cerca de 40 efectivos capazes de utilizar esse equipamento.

O PÚBLICO tentou, ao longo do dia de ontem, obter um depoimento de Rui Sá Gomes relativo ao inquérito em curso e também acerca da elaboração do regulamento que legitima a utilização das armas eléctricas nas cadeias. Apesar das diversas tentativas, nenhuma resposta foi prestada em tempo útil.