Vencidos da História

Em ano de centenário da República, nenhuma evocação foi tão idiossincrática como "Quem Diremos Nós Que Viva?". Tomando como motivo a partida da família real para o exílio, em 1910, Vítor Nogueira recorre ao método topográfico, desencantado e teatral que já tinha usado em "Comércio Tradicional" (2008) e "Mar Largo" (2009). O cenário agora é a Ericeira, vila de pescadores e estância balnear "a sete léguas de Lisboa".

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Em ano de centenário da República, nenhuma evocação foi tão idiossincrática como "Quem Diremos Nós Que Viva?". Tomando como motivo a partida da família real para o exílio, em 1910, Vítor Nogueira recorre ao método topográfico, desencantado e teatral que já tinha usado em "Comércio Tradicional" (2008) e "Mar Largo" (2009). O cenário agora é a Ericeira, vila de pescadores e estância balnear "a sete léguas de Lisboa".

Aí termina uma época, nessa imagem tão portuguesa de um rei deposto e de uma viúva vestida de negro abandonando a pátria, acompanhados de um pequeno e triste séquito de cortesãos. Um breve cortejo segue da praia para uma barcaça, e depois para o iate real, rumo a terras estrangeiras, enquanto lá em cima, do alto de uma falésia, os pescadores observam o fim da aristocracia. Estão em jogo "forças históricas" que ultrapassam as meras existências individuais de reis e de pescadores, mas tudo é afinal mais uma história de "vencidos da vida" que partem mar adentro.

O "sujeito poético"confessa, para evitar equívocos, que é republicano; simplesmente, diz que não vê nisso motivo de júbilo. Não tem a quem dar vivas. "Amélia de Orleães" é apenas uma das personagens históricas redivivas a quem empresta voz e movimento, com igual empatia. As outras são el-rei Sebastião, que há-de regressar, o profeta Bandarra, o "vencido da vida" Sabugosa, o regicida Buíça, e Mateus Álvares, falso Sebastião e "rei da Ericeira". São fantasmas trágicos, em perpétuo diálogo e eterno retorno, que se cruzam incongruentemente através dos séculos, que encarnam em pessoas vivas, que entram e saem de cena numa cuidada coreografia. A intenção é fazer destas "formas do passado" prenúncios de um futuro radioso sempre adiado e fracassado, como ainda é agora, cem anos depois: "Toques repetidos de clarim, vozes de comando / frequentes. É preciso controlar o nosso medo. / Conseguem ver o que se passa lá fora? História, / economia, assuntos políticos, tragam um especialista, / arranjem alguém que perceba. Estas ruas são reais, // demasiado reais. Qual vai ser agora a táctica? / Fazer a espiral apertada? Seguir para uma zona / mais alta? Depois de fumar terminamos a torre, / como quem reage a um excesso de estímulos, / trepamos carregados com um feixe de mágoas" (pág. 32).

A partida da família real para o exílio, na Ericeira de 1910, é um acontecimento concreto, que tem nos poemas a devida "reconstituição", com testemunhos vários e um fotógrafo da "Ilustração Portuguesa". Mas é apenas um episódio de uma história maior, feita de decepções e fantasias, e a que chamamos História de Portugal.

O sujeito poético em João Miguel Fernandes Jorge, esse, é assumidamente monárquico, e se "Sobre Mármore" não diz respeito ao centenário nem à monarquia, tem, ainda assim, traços constantes da História portuguesa e da História em geral.

É isso aliás que faz a vitalidade da série dos "Castelos", iniciada em 2004, e de que este volume tem mais alguns exemplos. Os Castelos são uma cartografia variável e volátil, e se há poemas chamados "Castelo de Arraiolos" ou "Castelo de Marvão", também há, por exemplo, um "Castelo de Brokeback Mountain". Mais do que uma geografia, é uma heráldica.

Tudo é heráldica em Fernandes Jorge, os poemas confundem admiravelmente recordações pessoais e descrições pictóricas, gente verdadeira e criaturas inventadas. Os próprios quadros citados (quase todos de museus alemães) compõem uma mitologia subjectiva, ao mesmo tempo material e dramatúrgica. Há sempre coisas concretas, bronzes, terracotas, ocres, vermelhos saibros. E há diferentes poses pictóricas, varões ilustres, cavaleiros de armadura, o apóstolo Tomé, figuras que mal desvendam os seus segredos. Os poemas perseguem esse segredo, mas nunca o desvendam. Até porque convocam também uma memória biográfica feita de alusões obscuras e às vezes fulgurantes. De Van der Weyden a Beuys, passando por Mantegna e Rothko, ou por Bravo e Palolo, esta colectânea é, de novo, uma pinacoteca que se transforma em cinemateca.

Os poemas têm o habitual idioma entrecortado, acoplado, hermético, tanto existem supostos trechos de uma carta como indicações, inusitadas mas fortemente poéticas, sobre a maneira de dobrar um casaco, ou o súbito assombro de uns olhos "azul genciana". João, o discípulo amado, afasta-se da cruz onde jaz Jesus e "a veste rubra volteia /ergue sobre o corpo nu dos crucificados / pestífera, negra nuvem de poeira". Personagens de Kavafis e Fassbinder encontram-se numa cidade de multidões, com "o desejo e a ansiedade do humano", "surgem com as estrelas" e "em pedras se convertem". E todas as relações humanas são ínvias, violentas e exaltantes: "Não sei se dividiam a rapariga, / partilhavam entre si / na ilusão do lado feminino // - à noite, / juraria sobre o versículo mais amado do Livro de Isaías, / por inteiro, o que restava lhes pertencia / no corpo tão de um / e do outro forte - // de fortaleza / que tocava a masculina virtude de ser, a / um tempo, meigo e brutal / o corpo crente de si mesmo corpo. E / era noite até ao alvor da madrugada" (pág. 74).

Vencidas pela História, ou por ela esquecidas, estas personagens fugidias vivem uma história contínua. Uma história que o poeta anima quando "separa a sombra daquilo que faz sombra".