Sokolov, o resgate da aura

Grigory Sokolov entra no palco, passo rápido e pequeno, quase cómico. É o Pinguim do Batman, mas não traz guarda-chuva. O seu crime é não gravar discos em estúdio. O que é reprodutível para ele não tem valor artístico. O seu móbil é recuperar a aura do grande pianista e da "grande música". O seu projecto, desesperado e intransigente, é salvar, custe o que custar, a autenticidade da performance. É um homem perigoso: está disposto a tudo pela música.

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Grigory Sokolov entra no palco, passo rápido e pequeno, quase cómico. É o Pinguim do Batman, mas não traz guarda-chuva. O seu crime é não gravar discos em estúdio. O que é reprodutível para ele não tem valor artístico. O seu móbil é recuperar a aura do grande pianista e da "grande música". O seu projecto, desesperado e intransigente, é salvar, custe o que custar, a autenticidade da performance. É um homem perigoso: está disposto a tudo pela música.

Há espectadores em cima do palco, nas cadeiras acrescentadas numa sala a abarrotar. E Sokolov lança-se a uma das peças que toca há muito tempo: a "Partita n.º 2", em dó menor. O ataque é directo, o piano brilha como raramente. Sokolov não é um pianista superficial, só de teclas - o teclado é só um intermediário para extrair um enorme som do interior do piano. O piano cresce. Mas a opção de Sokolov para a "Partita" é deixar a voz mais aguda liderar. A mão direita desenha o contorno de uma harmonia que Sokolov se preocupa em destacar, suavizando o baixo para revelar as transições harmónicas e as modulações. Neste gesto ele sacrifica o contraponto. Não é que as linhas da mão esquerda não se oiçam - ele sabe ser mestre também na clareza absoluta das vozes. Mas a opção estética de fundo é pôr Bach no reino da transformação harmónica e mostrar como ele foi inspirador dos românticos. Oposto a Glenn Gould na sua opção de não gravar em estúdio, ele tem também uma leitura oposta à do pianista canadiano em relação a Bach. Para Gould o contraponto é tudo. Mas Sokolov prefere guardar a mão esquerda para o fim, quando uma fuga o obriga a fazer emergir todas as vozes em pé de igualdade.

Uma contagiosa tosse percorreu o Grande Auditório e prejudicou a audição do Bach. Não é grave (a gripe), e pode acontecer involuntariamente (a tosse), mas por vezes fica a sensação de que para muita gente, adquirido o bilhete e sentado o rabinho, a música pouco importa, é apenas a irmã do tédio. Ou será que a música e os seus silêncios incomodam mais do que confortam?

Seja como for, o Brahms que se seguiu não sossegou ninguém. Como poderia sossegar uma interpretação fabulosa que explora os limites do som (e do sentido) das "Fantasias op. 116" de Brahms? Reactivando esplendorosamente a potência romântica e a radicalidade sonora daquelas peças, Sokolov mostrou o Brahms vanguardista e questionador do fim da vida. São "fantasias" de 1892 que têm mais de um século de piano à costas, mas procuram ainda a ruptura estética - o novo. E o novo emergiu.

E depois dos cafés, bolinhos e burburinhos do intervalo, veio Schumann: Sokolov explicitando as ligações profundas entre as partes da "Grosse Humoreske" ("Grande Humoresca") e as pequenas peças ("Scherzo", "Gige", "Romanze" e "Fughetta, op. 32"). Falsas relações (tonais) tornadas "verdadeiras", modulações impondo-se no mesmo magnífico som aberto do pianista russo. Quase cómico, quase melancólico, quase autêntico.

Depois ainda encores e mais encores, com Chopin, como Sokolov gosta muitas vezes de terminar. Mas o público estava com pressa de ir jantar, e ia saindo. Ficavam os mais curiosos, alguns envergonhados de sair, e os fiéis admiradores. Pronto, já está. O Pinguim agradeceu mais uma vez mecanicamente, abriu o guarda-chuva secreto, e voou.