Processo do prédio em que Sócrates teve a primeira casa desapareceu da câmara

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Sócrates viveu até 1996 no terceiro andar, o que tem varanda, do prédio do meio Jonatas Luzia

O vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, ordenou em Abril passado a sua localização e, se necessário, a sua reconstituição - depois de o PÚBLICO ter feito perguntas sobre ele -, mas até agora não aconteceu uma coisa nem outra.

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O vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, ordenou em Abril passado a sua localização e, se necessário, a sua reconstituição - depois de o PÚBLICO ter feito perguntas sobre ele -, mas até agora não aconteceu uma coisa nem outra.

A reconstrução de todo o miolo do edifício, à excepção do rés-de-chão, que já tinha sofrido obras, foi feita em 1991, pouco depois de os seus cinco pisos terem sido vendidos a outros tantos compradores. Entre eles contava-se o jovem deputado José Sócrates, eleito pela primeira vez em 1987, que decidiu fazer o mesmo que o seu colega António Vitorino: comprou um andar em mau estado de conservação, bem perto de São Bento, para depois ser reconstruído.

Ao contrário do seu companheiro de bancada, que adquiriu dois andares no prédio ao lado e dias depois requereu pessoalmente o licenciamento da obra - cujo processo se encontra nos arquivos municipais -, Sócrates negociou o apartamento e deixou as obras e a respectiva aprovação a cargo do vendedor. Transacção idêntica foi efectuada com os restantes andares, à excepção do rés-do-chão, que já tinha sido recuperado.

Por conta do terceiro piso, o deputado pagou seis mil contos (30 mil euros) em Maio de 1990, que era o máximo com direito a isenção de sisa. A reconstrução dos andares, de acordo com as plantas dos compradores, foi feita pelo vendedor (um construtor que formalmente agiu como procurador dos antigos donos) - desembolsando cada cliente cerca de 16 mil contos (80 mil euros) por fora.

Na altura em que fez as escrituras, Emanuel Ataíde Teixeira Pinto, o procurador, já tinha na câmara, em seu nome, um processo relativo à execução de "obras de beneficiação geral do prédio". Foi com base nesse processo - que está nos arquivos e dispensava licença, mas nada tem a ver com o da demolição e reconstrução do edifício - que os trabalhos arrancaram. De acordo com os elementos existentes na câmara, as obras - não se sabe bem quais - estavam em curso em Agosto de 1991, embora a ocupação da via pública só tenha sido autorizada em Outubro.

Uma informação da fiscalização, desse mesmo mês, indica, contudo, que no local estavam a ser feitas "obras de modificação aprovadas pelo processo 5072/OB/89, licença 5646, de 30/11/1990", e não as obras de beneficiação geral. Supostamente, terá sido com base nos projectos aprovados nesse processo que foram demolidos e reconstruídos os quatro pisos superiores do prédio, à excepção das fachadas.

Supostamente, porque o processo, incluindo os projectos e a licença, não se encontra nos arquivos municipais, e as diligências para a sua reconstituição, ordenadas pelo vereador Manuel Salgado em Abril de 2009, não deram qualquer resultado. Tudo o que se sabe é que o requerente foi Emanuel Teixeira Pinto.

"Fizemos todas as diligências possíveis, nos serviços da câmara e no Registo Predial, mas não conseguimos encontrar o processo nem contactar o requerente", disse na semana passada um responsável da Unidade de Projecto da Rua de São Bento, o departamento camarário encarregado de reconstituir o processo.

O vazio existente nos arquivos deixa, no entanto, várias questões em aberto. Por exemplo: se o projecto foi apresentado em 1989 pelo vendedor, como é que o andar de Sócrates, que só foi comprado no ano seguinte, foi feito de acordo com as suas instruções e com um desenho diferente de todos os outros? E será que as obras feitas, incluindo um quinto andar recuado de outro proprietário, correspondem ao projecto supostamente aprovado? Mais do que isso: será que houve mesmo um projecto aprovado e uma licença emitida, ou tratou-se de uma obra ilegal?

José Sócrates vendeu a fracção que ali possuía em 1996, por 30 mil contos (150 mil euros), adquirindo pouco depois o andar da Rua Castilho em que agora reside. A transacção foi feita com dispensa de licença de utilização, devido ao facto, declarado na escritura, de o prédio ter sido registado antes de 1952. Naquela altura, todavia, as licenças emitidas para reconstrução de edifícios tinham como condicionante a apresentação de telas finais, após as obras, e a obtenção de licença de utilização sem a qual as obras são consideradas ilegais.

Obras feitas foram licenciadas?

As dúvidas suscitadas pela forma como foram feitas as obras poderão nunca ter resposta, caso o processo não seja descoberto na Câmara de Lisboa. O PÚBLICO tentou esclarecer algumas delas junto do vendedor, mas, tal como a câmara, não conseguiu localizá-lo. O mesmo fez, também sem sucesso, junto de pessoas que ali adquiriram fracções em 1989/1990. No caso de Sócrates, as perguntas feitas por escrito no ano passado, e novamente na semana passada, não tiveram resposta. No que respeita às obras, a questão fundamental reside em saber se cumpriram o projecto alegadamente apresentado pelo vendedor à câmara e se este foi efectivamente objecto de aprovação e licenciamento. Uma porta-voz do gabinete do vereador do Urbanismo disse ao PÚBLICO que o desaparecimento de processos de obras é "uma situação anormal" na Câmara de Lisboa.