Filipa César e os fantasmas no presente

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No momento em que tentávamos iniciar, via "e-mail", a conversa, Filipa César (Porto, 1975) estava em Londres para assistir na Tate a um "screening" de videoarte de Israel. Dias antes passara por Lisboa para receber o Prémio BES Photo (venceu a 6ª edição) e em breve partiria para Berlim, onde vive e trabalha desde 1998. Pode parecer desnecessário evocar a condição de alguém que viaja e vive fora de Portugal, mas neste caso trata-se de um dado relevante. É que a obra recente desta artista portuguesa tem sido determinada pela relação entre a sua casa e atelier actuais (Berlim, Alemanha) e a sua identidade política e cultural. Ou, se quisermos, entre o seu presente e o seu passado. Por ora fiquemo-nos, definitivamente, pelo passado.

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No momento em que tentávamos iniciar, via "e-mail", a conversa, Filipa César (Porto, 1975) estava em Londres para assistir na Tate a um "screening" de videoarte de Israel. Dias antes passara por Lisboa para receber o Prémio BES Photo (venceu a 6ª edição) e em breve partiria para Berlim, onde vive e trabalha desde 1998. Pode parecer desnecessário evocar a condição de alguém que viaja e vive fora de Portugal, mas neste caso trata-se de um dado relevante. É que a obra recente desta artista portuguesa tem sido determinada pela relação entre a sua casa e atelier actuais (Berlim, Alemanha) e a sua identidade política e cultural. Ou, se quisermos, entre o seu presente e o seu passado. Por ora fiquemo-nos, definitivamente, pelo passado.

Sou o que vejo, ouço, gosto

Filipa César surgiu em finais dos anos 90,com uma obra onde era evidente a presença de elementos e referências do universo e da linguagem do cinema: a ficção e a ideia de montagem. Recorde-se "Untitled (Twirler)", de 1999, vídeo onde uma sequência de quartos e salas vazios (aparentemente apropriados de filmes de acção ou terror) suspendia um desfecho sempre frustrado, ou "Letters" (2000), que encenava uma série de diálogos, conversas e encontros em balcões dos correios.

Como nos trabalhos de João Onofre, João Pedro Vale, Francisco Queirós ou Rui Toscano, manifestava-se na sua criação a presença de "textos" e memórias de uma cultura de visual que excedia o campo da arte. Quase dez nos depois, a artista sente-se pouco confortável para falar em nome dos outros, mas adianta leituras que apontam para traços comuns: "Havia algo latente: como articular a percepção de uma cultura cinematográfica e musical. Tínhamos saído de cursos de pintura e achávamos artificial pintar, quando a nossa cultura estava relacionada com uma outra forma de construção da imagem. A questão da apropriação era também fundamental. Um processo de identificação por contacto: sou o que vejo, ouço, gosto."

O cinema, central no seu imaginário, não lhe tinha, contudo, chegado via escola de arte. "Vinha da televisão", revela. "Nos anos 80-90 havia ciclos fantásticos na RTP, Bergman, Godard, Truffaut, Orson Welles. Depois isso desapareceu." Mais tarde já a viver na Alemanha, o interesse pelo cinema tornou-se mais consciente e estendeu-se a um "discurso metacinematográfico com a descoberta de uma abordagem mais experimental do documentário: Alexander Kluge, Fassbinder, Harun Farocki, Robert Frank, Ivonne Rainer, Babette Mangolte, Frederick Wisemann".

Tratava-se de uma outra forma de envolvimento, na qual ressoavam questões e problemáticas que Filipa já tinha experimentado nos seus primeiros vídeos, em particular aqueles relacionados com a observação e a montagem - e vale a pena sublinhar uma estratégia que revemos nos vídeos "Berlin Zoo" (2003) e "Untitled (Romance)" (2000-2003) e nas primeiras sequências de "F for Fake" (1974) de Orson Welles, que a artista convocaria posteriormente numa obra homónima: a apropriação dos (não)actores do quotidiano.

Da sociologia e da antropologia chegavam também outras formas de fazer. "Interessavam-me não de forma académica, mas pelos temas que abordavam. O estudo de antropologia da arte e a forma como foi leccionado na Escola de Belas-Artes do Porto, com a professora Eglantina Monteiro, abriu-me plataformas de entendimento entre uma prática artística e o seu contexto sociopolítico. E para um relacionamento com o outro no presente e no passado."

Livre e incontrolável

Estes seriam alguns dos "mecanismos" ou "materiais" que lhe permitiram interrogar a natureza do "medium" (do vídeo) em "Untitled (Romance)" (2000-2003) ou "Letters" (2000), e as ténues fronteiras entre a ficção e o real em "Ringbhan" (2005) ou no seu "F for Fake" (2004) onde as imagens e as palavras de pessoas que comentam o filme de Welles são associadas aos planos da obra do cineasta, confundindo a adaptação com o original, a verdade com a mentira.

A pesquisa das propriedades da montagem enquanto determinação e associação de imagens continua entretanto a ser prática aprofundada. "As convenções cinematográficas ou televisivas são limitadas", explica. "O nosso pensamento funciona num registo de interligação, associação de imagens, textos, conteúdos, sentimentos, que é muito mais livre e incontrolável. Interessa-me [a montagem] exactamente porque pode tentar traduzir esse pensamento."

O lugar da obra proposta por Filipa também é outro que não o da tradicional sala de cinema. Referimo-nos ao espaço da arte e da instalação vídeo. É neste que existem "Le Passeur", mostrado em 2008 na Fundação Ellipse. ou "The Four Chambered Heart", apresentado o ano passado na Galeria Cristina Guerra. O primeiro consiste em dois filmes num ecrã duplo, o segundo solicitava, através da presença de uma série de cadeiras, a imobilidade do espectador para o visionamento de um filme. "Com a instalação é possível um tempo diferente, um outro relacionamento com a imagem em movimento e uma autonomia. O espectador move-se e os fotogramas sucedem-se. Os encontros que daí resultam são mais inesperados." Para além desta relação no espaço, emerge outra relação: com o tempo histórico. "A imagem em movimento permite uma possibilidade de aceder ao passado através do cinema ou da experiência deste." Como assim? "O cinema e a psicanálise surgiram simultaneamente. Analisar o cinema [do] passado cria uma espécie de acesso às intenções que levaram à produção da imagem e ao seu contexto. Por exemplo, o cinema de propaganda pode ser analisado segundo uma análise do 'subconsciente' do sistema que o produziu."

Pensar em alemão

Nos últimos dois anos, furtando-se sempre ao conceito de documento histórico ou investigação científica, o trabalho de Filipa César tem andado à volta de um passado; o passado de uma certa história política portuguesa. Foi assim com os testemunhos dos indivíduos que, durante o Estado Novo, ajudavam outros a saltar a fronteira ("Le Passeur") ou com "Memograma", patente no Museu Berardo. Este último teve como origem a história de Castro Marim enquanto local de degredo de homens e mulheres (e os ditos ou não-ditos, as histórias que essa punição gerou) e é constituído por uma série de fotografias e dois filmes ("Insert" e "Memograma").

As fotografias - forma de situar o contexto - documentam em Portugal o processo de censura sobre "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" (1971), de Fassbinder; os filmes podem ser vistos como fazendo parte de uma mesma instalação, enunciando "Memograma" - um plano fixo de 40 minutos de um monte de sal em Castro Marim - a presença de alguém que fala ou, como escreve a artista no catálogo, "imagens de um olhar contemplativo: quando a mente articula um pensamento e os olhos perseguem uma realidade paralela".

Ocasião então para confrontar Filipa com a sua identidade política e cultural e o lugar que é a sua casa. "O interesse num passado/presente sempre existiu, mas foi evoluindo com o trabalho. Na Alemanha, porque o discurso sobre o passado é permanentemente articulado no presente como um fantasma quotidiano, a certa altura também se começa a pensar assim. O presente é sempre mais difícil de discernir, porque nunca sabemos no que vai resultar, por isso procura-se pistas no passado. Esta forma de pensar em alemão foi alterando os meus automatismos de pensamento e da leitura do presente."