Gainsbourg na voz de Charlotte

Não toca instrumentos, não compõe, não escreve letras, apenas canta, e mesmo assim de forma nada consensual. Não se pode dizer que Charlotte Gainsbourg, no conservador mundo da cultura pop-rock, tenha grande cartão-de-visita.

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Não toca instrumentos, não compõe, não escreve letras, apenas canta, e mesmo assim de forma nada consensual. Não se pode dizer que Charlotte Gainsbourg, no conservador mundo da cultura pop-rock, tenha grande cartão-de-visita.

Outra actriz, Scarlett Johansson, lançou há três anos, com a ajuda de David Sitek (TV On The Radio), um excelente álbum, mas foi crucificada com um simples "não tem voz". Algo assim como dizer-se, sem olharmos a face na íntegra, que uma pessoa é feia por ter nariz comprido.

Se fosse assim, seria apenas necessária uma operação cirúrgica para os que se sentem com nariz comprido ficarem formosos. É verdade, muita gente fá-lo. Mas estão completamente iludidos. Não vão só alterar o nariz. Quando se modifica o nariz, altera-se tudo, a totalidade da face.

Sim, está longe de ser uma grande cantora, segundo os padrões do que deve ser uma grande cantora. Mas não precisa de fazer nenhuma operação vocal. Sabe posicionar-se no interior do todo, superando eventuais insuficiências através de sensações interiores, expostas com ambiguidade, que é afinal a sua singularidade - entre a tenacidade, a intensidade velada, sem se forçar à neurose fácil, e um desespero controlado, com variações lá dentro.

"IBM" é diferente do anterior "5:55", o disco concebido com os Air. Nesse, o espírito do pai Gainsbourg estava mais diluído. Agora não. Beck tratou de o trazer à tona. Sentimo-lo nos arranjos que evocam "Historie de Melody Nelson" (1971) - o álbum que o americano já havia lembrado em obras suas como "Sea Change" (2002) -, é visível em canções como "Le chat du café des artistes" ou "La collectionneuse".

Mas há também o pulsar cardíaco de alguns temas que parecem evocar obras como "Gainsbourg Percussions" (1964), embora outros estejam mais perto dos tribalismos contemporâneos personificados por Animal Collective ou M.I.A., como "Voyage", "IRM" ou "Me and Jane Doe".

É um disco diverso, com muitas pistas, da melancolia outonal em registo folk cristalino de "In the end", que a mãe Jane Birkin não desdenharia, ao nervosismo rock de "Greenwich mean time", no qual Charlotte se revela, afinal, uma cantora felina. É um conjunto de canções onde ainda se pressente o aroma de cigarros e o charme embriagado do pai Serge, mas esta Gainsbourg opta por superar fantasmas com veludo, discretamente dramática.