Os pecados de Helmut Newton

Foto
Catherine Deneuve em 1983

A luxúria não precisa de explicações, venha ou não a propósito da fotografia de Helmut Newton. É o que é, crua, sensual, expectante. Como um grupo de amazonas que ora estão vestidas para o trabalho ora estão despidas para o mesmo fim. Aí vêm elas, museu fora, imóveis mas exultantes na frieza da sua superioridade. Os "Big nudes" (1981), um dos vários ícones da história da fotografia que o fotógrafo alemão produziu, estão ao cimo das escadas da Fundação Helmut Newton, em Berlim. Do alto daquelas paredes, vários pecados nos contemplam.

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A luxúria não precisa de explicações, venha ou não a propósito da fotografia de Helmut Newton. É o que é, crua, sensual, expectante. Como um grupo de amazonas que ora estão vestidas para o trabalho ora estão despidas para o mesmo fim. Aí vêm elas, museu fora, imóveis mas exultantes na frieza da sua superioridade. Os "Big nudes" (1981), um dos vários ícones da história da fotografia que o fotógrafo alemão produziu, estão ao cimo das escadas da Fundação Helmut Newton, em Berlim. Do alto daquelas paredes, vários pecados nos contemplam.

Dez anos depois da edição luxuosa e limitada de "Sumo", o fotolivro de Helmut Newton criado em parceria com a Taschen, estas 394 fotografias estão pela primeira vez expostas ao público. E funcionam, como confirma ao Ípsilon o comissário da fundação, Matthias Harder, como um "best-of" do fotógrafo conhecido pelo seu trabalho na moda, pelos retratos de celebridades e, no fundo, pela carga sexual das suas imagens - um "best-of" póstumo, já que Newton morreu em 2004 num acidente de automóvel à saída do hotel das estrelas em Los Angeles, o Chateau Marmont.

"Sumo" foi o maior livro produzido no século XX - literalmente: media 50x70 centímetros, tinha 464 páginas, pesava 30 quilos e as suas dez mil cópias, todas assinadas por Helmut Newton, vinham acompanhadas por uma mesa de leitura assinada por Philippe Starck. O encadernador de bíblias do Vaticano foi chamado a ajudar na composição de um objecto carregado de imagens pouco católicas. "Odeio o bom gosto", disse Newton um dia. "É a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa criativa". Hoje um objecto de colecção muito procurado - recentemente, uma cópia foi vendida no eBay por 10.400 euros -, "Sumo" foi reeditado este ano, a pretexto da mostra na Fundação Helmut Newton e do décimo aniversário do projecto. Sem Starck, sem autógrafo original e com um preço de capa de 100 euros. "A disponibilidade limitada contribuiu para o estatuto lendário do livro. Os seus conteúdos permaneceram praticamente desconhecidos", nota Matthias Harder. Era algo mais do que um livro proibido: era o testemunho de uma era e uma súmula do núcleo conceptual do trabalho de Newton. Lá, e agora na Fundação, está todo o Newton. Publicidade, moda, retrato. Nus.

Dos "Big Nudes" ao cimo das escadas, a montagem salta para os ícones da cultura popular ocidental que Newton documentou com um olhar que não parece datado - as imagens vão dos anos 1960 ao final da década de 90 - nem desgastado pelos padrões entretanto estabelecidos pelos discutíveis herdeiros do seu trabalho (David LaChapelle, que Newton dizia ser o único que o fazia rir na fotografia contemporânea; Terry Richardson, filho do seu colega Bob Richardson; ou os "Three Boys from Pasadena" que também se expõem na fundação - Mark Arbeit, George Holz e Just Loomis, antigos assistentes de Newton).

São imagens de uma cultura com todos os seus fantasmas. As estrelas no seu Outono etário, como Anita Ekberg em 1958, longe da Fontana di Trevi de "La Dolce Vita"; os casais eternos do tipo Serge Gainsbourg e Jane Birkin; as modelos a caminho do super (Claudia Schiffer, Naomi Campbell); a cor do dinheiro de Gianni Agnelli; a modelo de semblante carregado numa noite de 1979, em frente ao Muro; a série "Date Rape", produzida para a "Playboy". E os interiores, normalmente em quartos de hotel ou de grandes villas italianas e francesas, em que há mulheres de seios nus mas engessadas, com aparelhos correctores pós-fractura, com máscaras e adereços S&M. Ou simplesmente mulheres - nuas, mas não gratuitas. Trouxe isso da fotografia de moda: "Percebi que só como fotógrafo de moda podia criar o meu tipo de universo e fazer os meus modelos desempenhar o papel de certo tipo de mulher."

Nas imagens de Helmut Newton, a decadência e os pecados eram "cool", cruéis, excessivos - no corpo de uma mulher ou no salto de um sapato Manolo Blahnik, numa jóia Bulgari ou numa sapuda mão feminina rumo a um punhado de dólares. Conduzia, até à exaustão, cada sessão. Tanto punha Catherine Deneuve de arma na mão quanto, numa das imagens mais fortes e duradouras da moda do século XX, como fotografava o "smoking" feminino de Yves Saint Laurent na Rue Aubry, em 1975, lado a lado com uma modelo nua, afrontando os padrões sociais.

Além dessas encenações muito típicas do trabalho de Newton, a exposição da Fundação também inclui os retratos. O peito nu de David Bowie em Monte Carlo, o papagaio nos dedos de Elizabeth Taylor mergulhada numa piscina, o pungente Salvador Dalì perto da morte, Luciano Pavarotti antes de um concerto, Zaha Hadid antes do Pritzker, Pina Bausch a dançar em Wuppertal (1983), David Lynch e Isabella Rosselini enlevados. Newton: Gostava de retratar "os que amo; os que admiro; os que odeio". Foi o acompanhante visual de vidas mais ou menos belas, mais ou menos excêntricas, mas sempre ricas. Muitas vezes eróticas. Algumas vezes gulosas. "Ao fazê-lo, e em simultâneo, serviu tanto quanto questionou os clichés", comenta Matthias Harder.

A Alemanha de Newton

Berlim é hoje uma cidade que se prepara para as comemorações da queda do Muro que a fendeu durante décadas e, simultaneamente, um centro cultural vibrante, equivalente à Nova Iorque dos anos 1970. Ali estão guardadas, também, as memórias de um país que, apesar da arrogância do Terceiro Reich, é a nação da modéstia.

Newton foi uma vedeta, fotografou algumas estrelas dessa Alemanha que mal ou bem se recompôs do pós-guerra, mas o seu "métier" nunca poderia ter sido levado a cabo naquele país. "Na Alemanha há uma certa reserva, que vem da Segunda Guerra Mundial, sobre o facto de se ser alemão", comenta Patrick von Ribbentrop, empresário têxtil e neto do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros nazi. Agora, depois do Mundial de Futebol de 2006 e da febre das bandeirinhas - não foi só Portugal -, a coisa mudou, mas ainda assim a Alemanha é um país discreto. Cada vez mais fascinado, é certo, pela maneira como a América acolhe e mistura os Norman Mailers e as Paris Hiltons, os Truman Capotes e as Edie Sedgwicks.

Newton estaria em choque com o seu país? Matthias Harder discorda. "Newton foi inspirado pelo primeiro fotojornalismo da República de Weimar, por fotógrafos como Erich Salomon [que morreria em Auschwitz] ou Martin Munkacsi, que publicavam trabalhos no 'Berliner Illustrirte Zeitung'. Mais tarde ele aumentou as possibilidades visuais e combinou diferentes inspirações vindas de Melbourne, Paris ou Hollywood", responde ao Ípsilon. "E não devemos esquecer que o seu êxodo da Alemanha nazi em 1938 foi seguido de uma espécie de re-emigração para Berlim com a sua Fundação, 65 anos mais tarde", completa.

"Aqui, a completa afirmação de si mesmo é considerada 'kitsch'", explicava ao "New York Times" Ulf Poschardt, editor do "Welt am Sonntag", a propósito de outra exposição de Helmut Newton em 2008. Os sujeitos de Newton, que agora vivem nas paredes da Fundação (e por tempo indeyetminado, porque a data em que termina a exposição ainda não está prevista), são positivistas, afirmativos. Sobretudo nos retratos, eles ali estão, como Newton quer, mas também como peças únicas. "Os seus retratos são intensamente individuais", comenta o curador.

O actual fervor do mercado pela fotografia e pelos fotolivros não reduz hoje o valor de "Sumo". Afinal, foi apenas há dez anos que o superlativo álbum foi posto à venda. Mas agora a sua versão "normalizada" está aí e as fotos, muitas das quais nunca antes vistas, estão em exposição. Perde-se a exclusividade, mas ganha-se o grande público. E Helmut Newton deixa finalmente para trás o peso, histórico e físico, de ter carregado o estandarte do maior, mais caro e mais exclusivo livro do século XX. Como na parábola do algodão e do chumbo, dá vontade de perguntar o que pesa mais: 30 quilos de hedonismo em papel ou 364 imagens-lastro do século passado, penduradas numa parede de Berlim?