Quando Marley era apenas um tipo, mas já era "o" tipo

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Em 1976, o fotojornalista David Burnett foi enviado pela revista "Time" à Jamaica como correspondente. A sua missão era escrever um artigo sobre a música reggae da ilha. A estrela era Bob Marley, claro. No entanto, havia um pequeno problema. "Tenho de confessar que nunca tinha ouvido falar do Bob até à semana anterior à viagem", conta Burnett. "Um dos investigadores com quem eu trabalhava disse: 'Vais fazer uma peça sobre reggae, por isso precisamos de algo com o Bob Marley.' Eu respondi: 'Quem é o Bob Marley?'"

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Em 1976, o fotojornalista David Burnett foi enviado pela revista "Time" à Jamaica como correspondente. A sua missão era escrever um artigo sobre a música reggae da ilha. A estrela era Bob Marley, claro. No entanto, havia um pequeno problema. "Tenho de confessar que nunca tinha ouvido falar do Bob até à semana anterior à viagem", conta Burnett. "Um dos investigadores com quem eu trabalhava disse: 'Vais fazer uma peça sobre reggae, por isso precisamos de algo com o Bob Marley.' Eu respondi: 'Quem é o Bob Marley?'"

"One love, one heart"... e sem a mínima ideia!

Burnett ri-se. É especialmente engraçado agora, tendo em conta que o fotógrafo e co-fundador da agência fotográfica Contact Press Images acaba de publicar um livro, "Soul Rebel: An Intimate Portrait of Bob Marley", com correspondente exposição que acaba de ser inaugurada na Govinda Gallery de Washington.

"Em 1976, a maioria das pessoas neste país não sabia o que o reggae era", diz Burnett. "Sabíamos o que o calypso [estilo de musica afro-caraibeano] era; tínhamos, de certa forma, crescido com 'The Banana Boat Song/Day-O', de Harry Belafonte, mesmo que não soubéssemos o que significava. Mas era preciso procurar entre pessoas que entendessem mesmo de música para encontrar alguém que soubesse realmente o que era o reggae. Eu não saiba... Mas isto foi antes de nos podermos sentar em frente do computador e ir ao Google investigar qualquer assunto."

Burnett fotografou Marley dentro e à volta do seu recinto na Hope Road, em Kingston, Jamaica, e a "Time" acabou por publicar uma única imagem do ícone mundial emergente, uma minúscula fotografia a preto-e-branco. Mas o jovem fotógrafo de Utah tinha centenas de outras fotos de Marley, em conjunto com alguns dos pioneiros do reagge, como Peter Tosh, Burning Spear e Lee "Scratch" Perry. Burnett aumentou a sua colecção um ano mais tarde, quando a "Rolling Stone" o enviou para a Europa durante a tournée de Marley, "Exodus", para fotografar tudo, desde os "sound checks" e jogos de futebol aos momentos mais sossegados e contemplativos no autocarro. "Era interessante" conta, "porque a carreira de Bob começava naquele momento a levantar voo, mas ele tinha os pés bem assentes no chão. Tinha um bom autocarro, mas eu tinha estado em autocarros melhores no Iowa com políticos que apenas conseguiam 12 votos."

Legado

O portfólio de Burnett está cheio de líderes mundiais e outras figuras famosas, desde presidentes e papas até ao Ayatollah Khomeini. (A capa da "Time" da edição controversa que elegia o homem do ano de 1979 era um retrato de Khomeini tirado por Burnett.) Mas havia algo particularmente inesquecível em Bob Marley, e não era só por ele ser tão simpático e fácil de chegar.

"Era mesmo um trabalho de sonho, porque o Bob estava feliz por estar connosco, ele dava muito de si quando o fotografávamos. Ele podia olhar em todas as direcções que eu não conseguia errar... O Bob tinha uma expressão facial maravilhosa - uma óptima cara e uma óptima presença. Não era só ter bom aspecto - e tinha. Nós é que sentíamos algo mais do que o que víamos pelo visor da câmara."

Tanta sabedoria. Tanto carisma - como se estivéssemos na presença de João Paulo II, diz Burnett, que fotografou o Papa. "Há poucas pessoas que têm este ar tão carismático. O Bob era só um tipo, mas era 'o' tipo."

Marley morreu em 1981, de cancro, aos 36 anos. Tinha um estatuto icónico, senão messiânico, por todo o mundo. E o tempo quase não afectou o seu legado. "Legend", uma compilação da música de Marley póstuma editada em 2002, tornou-se um dos álbuns de reggae mais vendidos de sempre, e o poeta-profeta continua a ser uma das figuras mais adoradas da música pop.

As suas canções, sobre justiça, liberdade e amor continuam a ser celebradas por todo o mundo. (Sim, foi o hino de Marley, "One Love", que Will.I.Am, Herbie Hancock e Sheryl Crow tocaram na Barackapalooza, a festa que antecedeu a tomada de posse do Presidente Obama no Lincoln Memorial, em Washington DC. E não, não há nada melhor que o original.)

"Soul Rebel" chega na altura em que se comemorou o aniversário de Marley. Faria 64 anos no dia 6 de Fevereiro. Burnett não tinha pensado fazer uma exposição, muito menos um livro, até há quatro anos, quando viu um poster de Marley na porta do quarto de um amigo da filha numa residência de estudantes.

"Era uma das minhas fotos!", exclama. "Não sei se vendemos os direitos para ela, ou se alguém a viu numa revista e decidiu fazer um poster. Mas eles acharam que era fixe. E aqui estavam estes miúdos, todos eles nascidos depois do falecimento de Bob Marley, a olharem para ele e para a sua música com carinho e atracção magnética. Era maravilhoso."

E isto motivou Burnett a limpar o pó ao portfólio com décadas de Marley, cheio de centenas de fotografias não publicadas. Menciona a colecção ao seu amigo, Chris Murray, o proprietário da Govinda Gallery, que acabou por escrever a introdução do livro. Numa entrevista, Murray descreve as fotos como "extraordinárias". "As imagens são tão fantásticas que quase tive uma reacção física a elas. O Bob transmite muita intimidade nestas fotos."

Uma fotografia que não vão ver: Bob Marley com o próprio Burnett. "A minha filha perguntou: 'Onde está a tua foto com o Bob?'. Eu gostava de ter uma. Mas não estava a pensar nisso em 1976-1977; essa fotografia não existe."