Entrevista a Nadir Afonso: "Se tiver um metro quadrado de espaço para trabalhar sou tão feliz como numa grande cidade"

Entrevista a Nadir Afonso por Ana Paula Dias em 2009.

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Nadir Afonso fotografado em 2002 Nelson Garrido (arquivo)

Em Janeiro, Chaves ficou a conhecer o projecto da Fundação Nadir Afonso, com assinatura de Siza Vieira, que a partir de 2010 acolherá nas margens do Tâmega grande parte do espólio do pintor que ali nasceu.

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Em Janeiro, Chaves ficou a conhecer o projecto da Fundação Nadir Afonso, com assinatura de Siza Vieira, que a partir de 2010 acolherá nas margens do Tâmega grande parte do espólio do pintor que ali nasceu.

Previsto para a mesma data, surgirá em Boticas outro pólo da fundação, um centro de artes desenhado pelo atelier da nova-iorquina Louise Braverman. Hoje é inaugurada na Assembleia da República uma exposição de obras suas, "As Cidades no Homem", que ali ficará até 20 de Março, visível de 2ª a 6ª feira, das 15 às 17 horas.

Nadir, nome de origem persa que em hebreu significa "raro", trabalhou no fim dos anos 40 em Paris no atelier de Le Corbusier (que o deixava pintar durante as manhãs sem descontar essas horas no ordenado) e em 1951 no atelier de Oscar Niemeyer, no Brasil.

Aos 88 anos, é um homem luminoso aquele que entra na sala da casa de Cascais onde habita com a mulher, Laura, e os dois filhos, de 19 e 26 anos, este arquitecto.

Tem também três filhas mais velhas, nascidas de outros tantos relacionamentos em França. Durante anos, manteve o costume de ficar por Paris de Setembro a Abril e por cá de Maio em diante.

Só nos anos 80 optou definitivamente por viver em Portugal. Ouve com dificuldade mas fala ininterruptamente e, quando a conversa acaba, acrescenta com uma leve candura: "99% das perguntas que me fez não sei responder, não fazem sentido para mim." Aquele 1% que restava já ele tinha pedido logo no princípio para esclarecer. E é assim:

Nadir Afonso: Eu tenho uma concepção estética sobre a arte, que é original e sobre a qual já escrevi, mas nunca ninguém me questiona sobre isso! Para compreender o mecanismo da criação é preciso ser muito inteligente, está muito bem... [esboça um sorriso mordaz]. Mas se o indivíduo não manipula as formas, se não dá prática efectiva ao pensamento, ele não consegue compreendê-la. A obra de arte é regida por leis que são apenas apreendidas pela intuição sensível e, isto é muito importante, só quem trabalha as formas, quem desenvolve a sua intuição perceptiva, compreende o mecanismo da criação. A intuição desenvolve-se com o trabalho.

E esse só pode ser o artista?

Pode ser outra pessoa, mas tem que meditar sobre o mecanismo da criação. O essencial é a compreensão desse fenómeno.

O mecanismo da criação, ou seja, da obra artística, é um mecanismo universal?

Há uma concepção cósmica relacionada com tudo isso, eu também tenho uma concepção cósmica.

Quer dizer que o crítico...

... está por fora do problema. Uma pessoa lê Kant, lê Adorno, lê grossos volumes que não falam uma única vez nas leis que regem a obra de arte. Pegam numa obra célebre, fazem o seu relacionamento com a sociedade, a psicologia, a política, a teologia mas sobre o elemento essencial, que é a obra em si, não se debruçam. O fenómeno arte nunca é estudado.

Tem sido essa a sua grande preocupação. E defende que existem leis?

Que são a perfeição (dos objectos), a originalidade, a evocação. O homem trabalha dentro dessas qualidades da natureza. Nesse corpo a corpo com as formas, nessa manipulação - e agora é aqui que está o golpe de teatro - o indivíduo apercebe-se que há uma quarta qualidade que não está nos objectos, e essa qualidade é que é essencial: os espaços geométricos têm qualidades morfométricas e quando o indivíduo descobre, começa a empregar leis matemáticas. Assim, a quarta qualidade não está nos objectos, é uma lei matemática que está na geometria das formas e que também está na natureza, tal como estão as outras. Essa lei vai exaltar as outras qualidades e quando perante uma obra se exclama: "Fez a perfeição... foi com a sua alma!" Não é a alma, é a capacidade de descobrir na natureza essa lei matemática.

E da qual muitos artistas não se apercebem?

Exactamente. Muitos dizem: "Não venhas para cá com a geometria e com as leis matemáticas. Eu emprego a minha alma!"

A não ser que a alma seja geométrica...

A não ser que sim. As pessoas dizem: "Mas eu não vejo lá geometria nenhuma!" Pode não ser o quadrado, mas ser a capacidade do artista de juntar as leis da matemática às formas dos objectos. É muito subtil. É uma intuição. É o trabalho. Há uma morfometria, há um arranjo geométrico dos objectos em que o artista 'lança' leis matemáticas.

Neste momento, que trabalhos tem em mãos?

Estou a olhar os meus trabalhos, desenhos e guaches, para entender onde é que eles são chocantes e perceber que aqui e ali devo alterar. Se forem óleos, faço outros. Aos 88 anos, a minha sensibilidade evoluiu.

Muitas das suas obras estão dispersas, perdidas?

Perdi muitos trabalhos, sobretudo de quando era estudante.

Uma médica, que vive perto daqui, contou-me que teria uns 15 anos quando o liceu onde andava organizou uma visita de estudo a Coimbra, onde decorria uma exposição de Nadir Afonso. Ficou de tal modo fascinada com as obras que nunca as esqueceu e foi por isso que passou a frequentar exposições. Sente-se responsável por esses que chegaram à arte através dos seus quadros?

Isso é interessante! [Ri-se e o riso é tristonho] A meu ver, era importante dar mais a conhecer o meu trabalho. Parece falta de modéstia, mas muita gente diz: "Fala-se deste e daquele, mas não no Nadir!" Os outros têm actividades que são públicas, eu nunca quis.

Quis isolar-se?

Pensei sempre em criar, realizar uma obra. Era uma fascinação tal, que não dava para mais nada. Foi uma gafe. Sinceramente, nunca pensei que era necessário ao mesmo tempo promover-me.

Estudou arquitectura nas Belas-Artes do Porto e trabalhou em Paris, no atelier de Le Corbusier, entre 1946 e 1951. Em 1949 estava na Normandia a trabalhar na reconstrução de cidades destruídas pela guerra. Partiu depois para o Brasil (1951) e aí colaborou com Oscar Niemeyer. Mas em 1965 abandonou em definitivo a arquitectura. Porquê?

Pensei que estava a despender forças numa coisa que não me interessava.

Estudou na École des Beaux-Arts como bolseiro do governo francês, graças à influência de Portinari, pintor brasileiro. Aprendeu algo?

Não aprendi coisa nenhuma.

Durante três anos, o seu trabalho no atelier de Niemeyer era apenas o de colaborador?

Eu nunca tive projectos meus. Mas ele era um homem simpático e as coisas correram muito bem.

Voltou para Portugal nos anos 80. Seria melhor ter ficado por Paris, ou Brasil?

É claro que eu gostei do Brasil, mas para estar a trabalhar não me adaptava. De resto eu tinha uma vontade de pintar... e como arquitecto isso não era possível. Para mim, era bom estar em Paris, mas a pintar. À medida que fui trabalhando cheguei à conclusão que já não era Paris, já não era Nova Iorque, podia muito bem ser Lisboa. Em Chaves podia fazer a minha obra. Quando entendi as leis da obra de arte percebi que já não precisava de mais, comecei a sentir que essas leis são universais e que eu podia estar muito bem em qualquer lugar. Se tiver um metro quadrado de espaço para trabalhar sou tão feliz como numa grande cidade. Comecei a sentir que a minha obra era cosmopolita, em qualquer parte se podia desenvolver.

Viu passar a ditadura e chegar a democracia. Alguma coisa o incomoda em termos de desenvolvimento do país?

Nunca liguei, não sou nada influenciado por isso.

Em 88 anos de vida (que festejou a 4 de Dezembro) nada conseguiu vencê-lo. Nem a crítica?

Não. Eu ficava feliz se sentisse que um crítico aderia à minha obra, mas mesmo que dissesse mal eu continuava. Não era essencial. Senti pouco a pouco: tenho que realizar uma obra. E foi importante sentir que compreendi as leis que regem a obra de arte.

A harmonia do mundo entra nos quadros de Nadir?

Eu sei que há uma harmonia na obra de arte, mas para ser sincero nunca tentei compreender quais os laços que existem entre ela e a harmonia no mundo. Um quadrado com um círculo cria uma nova relação difícil de encontrar, mas são essas formas elementares, essas leis, que me tocaram. Se fossem as mesmas, muito bem, mas eu não andava atrás das leis do universo. Nada me faria sair das leis que encontrei nas formas da natureza, nas formas simples.

É uma pintura que se constrói segundo essas leis?

Exactamente.

Dos 20 aos 26 anos expõe com o Grupo dos Independentes (Porto, anos 40). Foi um tempo agitado?

Não me pareceu, mas havia fraternidade entre nós, havia. Encontrávamo-nos no Majestic para falar sobre arte, entre outros, Júlio Resende, Júlio Pomar, Fernando Lanhas. Eu lia Pessoa e outros, como todos nós. Um dia, estava no quarto a ler e caio nesta frase tão linda: "Espera por mim no Além/ Eu não deixarei de ir ao teu encontro nesse côncavo vale". Fecho o livro e saio do meu quarto, vou para o meio da rua, vou para o Majestic. Aquela frase impressionou-me tanto que vou ver se aparece alguém, será o Júlio Resende? Só encontrei acabrunhado num canto, um tal Mingacho e digo-lhe essa frase magnífica. "Côncavo não, convexo para quem está debaixo da terra!", responde ele. Está a ver?!

Era um espírito prático... quando lá chegarmos veremos se é côncavo ou convexo.

Veremos. Nesse tempo, nós éramos todos amigos, ainda não havia dinheiro, ainda não havia quezílias, nem rivalidades.

Em 1944, a obra de Nadir entusiasma a crítica na 9ª Exposição de Arte Moderna em Lisboa. Tinha 24 anos e estava rendido ao surrealismo?

Gostei de Max Ernst, de Chirico. Mas abstraccionismo, surrealismo, são nomes. Eu não sou nem contra o abstraccionismo, nem contra o figurativo, desde que siga a lei matemática.

Surrealismo, período irisado, barroco, período egípcio. Não se pode falar na sua obra sem a dividir por estes períodos?

Talvez se possa, mas não é isso que eu procurava. E esse período irisado já não é de ninguém, era eu que procurava algo com muita cor, irisar, íris. Usei tintas gliceroftálicas que têm cores muito brilhantes, procurava a intensidade total da forma. No barroco estava influenciado pela arquitectura barroca que existe no Porto. Também me impressionou muito a antiga pintura egípcia. Tudo isso me pode ter influenciado, mas o que eu procurava era a harmonia. A tal morfometria.

Encontrou-a?

Tenho quadros em que consegui.

A ligação aos espaços urbanos na sua pintura é ainda a ligação com a arquitectura?

Eu não faço ideia nenhuma se o arquitecto influenciou, se não. Nunca me debrucei sobre esse problema. Estou inocente [risos].

Parece que as cidades circulam à volta do seu atelier de pintor (tem um atelier de guaches e um atelier de óleos). Os trabalhos nascem como cidades?

Também não. É intuição pura, o raciocínio não intervém. Não há a mínima preocupação em fazer o que quer que seja. Geralmente, começo por fazer um desenho, um guache e só depois amplio para óleo. Pego num papel e sem saber bem o que estou a fazer há um impulso, faço um quadrado preto, por exemplo, numa folha branca, e esse depois é que me vai revelar, despertar para alguma coisa. E ponho um traço vermelho, sem saber o que estou a fazer. Estou a procurar impulsos para fazer uma terceira forma e alguém que esteja a ver que acrescentei um triângulo amarelo pode perguntar o que é que isso quer dizer. Eu não sei e vou acrescentando ou tirando formas. É muito possível que haja reminiscências.

Muitos quadros [actualmente está representado pelas galerias António Prates e S. Mamede] têm nomes de cidades como Veneza ou Moscovo. Visitou-as realmente?

Vou contar uma barbaridade. Para encontrar o título, por vezes vou procurar no Dicionário Larousse um nome que me parece ajustar-se. Mas isso é secundário.

Uma das suas obras, Mortes même dans le souvenir, tem alguma ligação com o 11 de Setembro (Nova Iorque)?

Não, não tem nada que ver. Olhei para essa pintura e lembrei-me desse título.

Com a Fundação a funcionar tanto em Boticas como em Chaves (prevê-se que os edifícios estejam concluídos até 2010), passará lá algum tempo a trabalhar?

Ainda não sei.

O isolamento tem sido essencial ao desenvolvimento da sua obra?

É essencial para encontrar uma mensagem. O homem tem que trabalhar e tem que meditar naquilo que faz. Foi o que eu procurei fazer.

Que será dito no futuro da obra de Nadir Afonso?

Isso é uma pergunta terrível. Espero que acabem por gostar do trabalho e que o compreendam. Espero que o futuro me dê razão.

EPISÓDIOS DE VIDA

Arquitecto por acaso

Uma personagem fugaz interferiu na sua vida. Terminado o liceu, Nadir Afonso quis inscrever-se no curso de pintura da Escola de Belas-Artes do Porto, mas o funcionário perguntou-lhe: "Porque não vai para arquitectura?" E ele foi, tinha 17 anos e já vira premiada uma das suas aguarelas. No futuro, haveria de recorrer à sua formação de arquitecto para sustentar a enorme paixão pela pintura. Dos 20 aos 26 anos expõe e convive com o Grupo dos Independentes de que fazem parte pintores como Júlio Pomar e Júlio Resende. E começa a escrever o primeiro de vários estudos, neste caso sobre o fenómeno da óptica. Aos 24 anos, viu adquirido um quadro seu, A Ribeira, que foi integrar a colecção do Museu de Arte Contemporânea de Lisboa.

Um traço faz toda a diferença

Nadir Afonso sempre utilizou o mesmo método de trabalho: faz um estudo de pequenas dimensões, depois um guache com cerca de trinta centímetros e envia esse original para ampliação. Nessa fase, o que conta não são as cores mas, fundamentalmente, os contornos. Faz o decalque com o bico de uma esferográfica sobre a tela ajudado pelo papel grafite e pinta a óleo com mão firme telas que podem ter dois metros. Conta que um dia entrou em casa de alguém e viu na parede uma dessas telas. Não se lembrava de ter feito um certo traço negro que agora observava e acercou-se mais do quadro. Afinal não estava lá mas, visto ao longe, esse traço fazia tanto sentido que ele o "viu" representado.