Avenida da Liberdade renasce

Lisboa tem tantas possibilidades. Discute-se o esgotamento do Bairro Alto, como bairro cultural e espaço boémio. Passa-se anos a debater o que fazer com o Parque Mayer. A maior parte dos agentes culturais diz que não existem espaços. Depois, há noites assim, em que tudo é perfeito.

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Lisboa tem tantas possibilidades. Discute-se o esgotamento do Bairro Alto, como bairro cultural e espaço boémio. Passa-se anos a debater o que fazer com o Parque Mayer. A maior parte dos agentes culturais diz que não existem espaços. Depois, há noites assim, em que tudo é perfeito.

Foi na quarta-feira, noite invernosa, ali para os lados da Avenida da Liberdade (num perímetro que abrangia o ex-cinema S. Jorge, o Variedades no Parque Mayer, o cabaret Maxime e o teatro Tivoli), naquela que deveria ser uma das zonas nobres da cidade, mas que hoje é uma área sem identidade, há poucos anos refúgio de prostituição.

Anteontem circulava-se descontraidamente. Viram-se pessoas a descobrir que a sua cidade esconde espaços charmosos como o velho Variedades - com doenças ao nível da acústica, por exemplo, mas é para isso que existem médicos. Em noites assim, percebe-se que o problema de Lisboa é não criar outras centralidades, como o Cais do Sodré, Cabo Ruivo, Almirante Reis ou ali. A dificuldade não é os espaços, é como ocupá-los, dar-lhes vida, fazê-los participar na sociabilização, através do consumo do prazer.

O pretexto para tudo isto chamou-se música ao vivo, convite à interacção em lugares públicos, participação numa festividade comunitária. Por isso, o destaque da primeira noite do Festival Super Bock em Stock foi antes de tudo a simplicidade da ideia, o conceito, o mote.

O público português, habituado a pouco, suspeita quando lhe pedem para ser feliz. Por isso, havia alguma desconfiança inicialmente. "Não sei bem como vou assistir a tantos concertos em simultâneo", dizia ao princípio da noite Irene Coimbra, 31 anos, revelando contrariedade por ter que se decidir entre 12 actuações, em particular pelos concertos de Rui Reininho, A Fine Frenzy e Santogold coincidirem. "Ainda não me decidi sobre o que vou ver."

Tal como uma cidade não se descobre apenas quando percorremos os lugares que é suposto visitar - às vezes é necessário vaguear, perdermo-nos, ter disponibilidade para a aventura -, um festival não pode ser apenas espaço de confirmação. Tem que ser também convite à descoberta.

Cartaz variado

Este festival, coisa rara em Portugal, tem isso, com nomes emergentes de vários géneros, ao lado de alguns com maior visibilidade. Alguns deles, como o excepcional guitarrista americano Jack Rose até são experimentados, mas o seu reconhecimento é recente. Às 21h, quando começou, curvado sobre a sua guitarra, dando-nos acordes da América profunda, ainda o Maxime não estava cheio, mas já estava imerso naquela sonoridade transcendente.

Quarenta minutos depois, quem quisesse entrar no S. Jorge tinha que esperar que alguém saísse. A sala principal estava repleta para ver a neozelandesa Ladyhawke, que veio mostrar o álbum de estreia, mistura de electricidade rock e pop sintética. Ao vivo, de guitarra, ao lado de três músicos, revela-se competente perante uma plateia que reage a canções como Paris burning ou My delirium.

Pouco depois, os franceses Caravan Palace, ilustres desconhecidos para a maioria, transformam o Variedades num enérgico cabaret com incursões jazzísticas, alusões ciganas e alguns ritmos electrónicos à mistura, restituindo vida à sala. Para Guida Varão, 34 anos, "foram uma revelação". "Nunca os tinha ouvido na minha vida", diz ela, mas a maior descoberta foi o lugar. "Isto tem imenso potencial. Estes espaços no centro não deviam estar abandonados. É melhor assistir a concertos aqui, nestes lugares intimistas, do que nos 'pavilhões Atlânticos'."

Às 23h atravessa-se a avenida nos dois sentidos. Há quem venha do Tivoli, depois de ter assistido ao soul-jazz do americano José James, para ver Rui Reininho no S. Jorge. E existe o movimento inverso, com muitos que estavam no S. Jorge - onde, na sala pequena, os portugueses Pontos Negros prestaram vassalagem aos Strokes e Heróis do Mar, com uma versão de Supersticioso - a confluir para o Tivoli, que se revelará pequeno para receber os que querem ver a americana Santogold, a mais esperada da noite.

Não é difícil perceber porquê. O seu álbum homónimo de estreia agrupa algumas das canções mais excitantes do ano. O que não significa que, em palco, seja fenomenal. Não é. Mas a festa aconteceu na mesma, com o excelente DJ inglês Martelo e duas cantoras-bailarinas a suportarem uma sonoridade urbana e mutante, entre o electro, o dub e o rock. O público revelou-se rendido desde o princípio, reagindo a L.E.S. artistes ou Say aha, acabando, uma parcela dele, em palco, a pedido da cantora. O final deu-se ao som de Creator, com todos a dançar e cantar.

Quem passasse pela porta do Maxime depois das 24h poderia ser levado a pensar que, lá dentro, estava Madonna, tal a multidão à porta. Mas não. Era apenas a sueca El Perro Del Mar, cantora e compositora de canções intimistas para guitarra e piano que, apesar do barulho de fundo provocado pela excitação, conseguiu criar um ambiente introspectivo, com melodias amaciadas e uma voz de leveza vaporosa. Antes, no S. Jorge, Rui Reininho já havia feito um dueto com a ex-Doce Lena Coelho, na interpretação de Bem bom; Tanya Stephens, no Variedades, havia concluído uma sessão de reggae e a americana A Fine Frenzy revelado as canções tranquilas do seu disco de estreia.

Ontem houve mais festival, com Lykke Li ou Walkmen, e para o ano, segundo a organização, também haverá. Alargar o evento para o Coliseu, Teatro Dona Maria II ou Hard-Rock Café são algumas hipóteses. A avenida agradece.