As juventudes de Coppola

Pouco importa o que pensemos deste estranho "Uma Segunda Juventude", que esta semana se estreia, o filme que veio quebrar um silêncio de dez anos: significa que Francis Ford Coppola, um dos maiores realizadores dos últimos 40 anos e possivelmente o maior dos americanos no mesmo período, ainda não acabou.

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Pouco importa o que pensemos deste estranho "Uma Segunda Juventude", que esta semana se estreia, o filme que veio quebrar um silêncio de dez anos: significa que Francis Ford Coppola, um dos maiores realizadores dos últimos 40 anos e possivelmente o maior dos americanos no mesmo período, ainda não acabou.

Estranho filme, "Uma Segunda Juventude". Quase totalmente produzido "off-Hollywood", contando com financiamentos alemães, franceses, italianos e romenos, rodado na Europa (Roménia e Suíça, sobretudo), e praticamente sem actores americanos - descontando um breve "cameo" de Matt Damon, os protagonistas são o inglês Tim Roth, o suíço-alemão Bruno Ganz e a alemã de origem romena Alexandra Maria Lara (a namorada de Ian Curtis no "Control" de Anton Corbijn). Nunca Coppola se tinha afastado tanto da Hollywood que, nos anos 1970, ajudou a reconstruir.

"Uma Segunda Juventude" - a estranheza não se fica por aí - adapta um romance do romeno Mircea Eliade (editado entre nós pela Bico de Pena) e é uma variação esotérica e "transcultural" (são evocadas diversas referências orientalistas) sobre o mito da "eterna juventude". Um homem de 70 anos é fulminado por um raio e, quando as queimaduras saram, o seu corpo passou a ser o de um homem de 40. Mais do que uma "segunda juventude" é uma "juventude sem juventude", como diz o título original ("Youth without Youth").

Não precisamos que Coppola nos confirme (como, em entrevistas, tem confirmado) que se trata de um filme "muito pessoal", porque desconfiamos logo que o seja. A "juventude", a sua recuperação, os seus sonhos, mas também a sua impossibilidade ou a sua maldição, tudo isto são temas seus, percorrem vários dos seus filmes (mesmo os "Padrinhos"), e Coppola já mergulhou neles profundamente (com mais evidência em "Peggy Sue Casou-se", de 1986). Não era outra a questão mais forte em "Drácula de Bram Stoker" (1992), que como "Uma Segunda Juventude" se passava em ambiente... romeno. Mas o que quer dizer, para Coppola, uma "juventude sem juventude"? Está a falar de si agora, de um recém-redescoberto vigor criativo, ou de um sonho mais ou menos quimérico? Ou alude à sua juventude propriamente dita, que teria sido vivida "sem juventude"?

Na iminência do fracasso

É preciso perceber que Coppola viveu sempre na iminência do fracasso e que na sua carreira o fracasso foi eventualmente mais determinante do que o sucesso, para além de serem, o sucesso e o fracasso, coisas que se podem confundir, como veremos. E que foram muitas as vezes em que se anunciou o fim de Francis Ford Coppola. Quando estava na selva das Filipinas a rodar "Apocalypse Now" (1979), a gastar milhões de dólares por dia e a produção a desafiar o caos a cada instante, dizia-se que se ia espalhar ao comprido, dizia-se que dali não podia sair nada com pés e cabeça. Mas não se espalhou, e pelo contrário "Apocalypse Now" juntou-se aos "Padrinhos" na galeria dos títulos lendários de Coppola, como eles uma das obras-primas do cinema americano da idade pós-clássica. A problemática rodagem de "Apocalypse Now" até terá reforçado uma crença de Coppola, a de que "um filme que não corra o risco de ser um grande fracasso nunca pode ser um filme muito bom" - o que sendo provavelmente verdade não significa que se possa sempre iludir o fracasso.

Como Coppola percebeu na pele no seu filme seguinte, "Do Fundo do Coração" (1982), outro "filme de risco" que encarou de frente a possibilidade do fracasso, mas sem conseguir esquivar-se-lhe. Temeu-se outra vez (estávamos no princípio da década de 1980) o fim de Coppola. O "flop" tremendo de "Do Fundo do Coração" deixou-o afogado em dívidas e fez ruir o seu grande sonho, a Zoetrope, a casa de produção que ele imaginara poder ser uma "major" para filmes de autores vindos de todo o mundo (Michael Powell, Jean-Luc Godard, Wim Wenders: todos andaram por lá). Os anos 1980, Coppola passou-os a rodar "pequenos filmes" - "Rumble Fish" (1983), "Peggy Sue Casou-se" -, que precisava de fazer para pagar dívidas, enquanto toda a gente esperava pelo seu regresso aos "grandes filmes".

No final da década, e no princípio da de 1990, Coppola parecia estar em condições de regressar aos filmes com o tipo de dimensão dos seus célebres títulos dos anos 70. Fez a terceira parte do "Padrinho" e logo a seguir veio "Drácula" e o seu épico onírico. Mas depois o enigmático eclipse: nos 15 anos entre "Drácula" e "Uma Segunda Juventude", apenas dois filmes, "Jack" (1996) (sobre um miúdo com corpo de velho - "voilà") e a tal, elegantíssima, adaptação de Grisham. Era outra vez o "fim" de Coppola, pretensamente desinteressado do cinema, recorrendo a ele apenas com preocupações alimentícias, agora para ajudar na gestão das vinhas, como nos anos 1980 para pagar as dívidas da Zoetrope.

A questão é que, confessadamente, o sonho de Coppola sempre esteve mais perto dos "pequenos filmes" do que dos "grandes". O que ele queria ser era um autor-artesão, fazer filmes pessoais, baseados em argumentos seus. Era o que a sua juventude queria, mas não foi exactamente o que a sua juventude teve. Catapultado pelo sucesso do "Padrinho" (1972), para Coppola tornou-se mais difícil voltar, no imediato, a registos de produção mais modestos. Se fez "The Conversation" (1975), um "filme pessoal" que ainda hoje é o seu preferido, foi porque o impôs como condição para rodar a segunda parte do "Padrinho" (1974). Apesar da Palma de Ouro em Cannes, "The Conversation" viveu esmagado pela vizinhança, dos "Padrinhos" e, depois, de "Apocalypse Now". Comentando o relativo apagamento de "Conversation", Coppola disse: "Ninguém o quis ver. É um grande drama para mim: ninguém parece interessado nos filmes que eu realmente quero fazer."

A causa do problema Coppola aponta-a claramente: "O Padrinho". Palavras suas numa entrevista à "New Yorker", em 1997: "De várias maneiras arruinou-me. Fez a minha carreira seguir por um lado, em vez de por onde eu queria que ela fosse, que era ser realizador-argumentista e fazer trabalho original. (...) Basicamente, "O Padrinho" fez-me violar muitas das esperanças que tinha para mim, naquela idade." E mais à frente: "Nada que tenha a ver com "O Padrinho" me dá muito prazer. (...) Foi uma experiência horrível, tenho náuseas só de pensar nisso." Para perceber isto, é preciso voltar à Hollywood de princípios de 1970, e ao tempo em que uma geração (os "movie brats": Coppola, Scorsese, Spielberg, entre vários outros) lutava para garantir ao mesmo tempo a liberdade e um lugar na linha da frente da produção americana. Deles todos, Coppola era o "irmão mais velho", o que teve de se tornar adulto mais cedo - os outros dependiam dele. John Milius (que realizou "Dillinger" e colaborou com Coppola no argumento de "Apocalypse Now"): "Sempre dissemos que éramos um cavalo de Tróia, mas não era verdade, porque quem lá estava dentro a segurar o portão era Coppola. Ninguém, nem Spielberg, nem Lucas, teriam existido sem a ajuda de Coppola." Walter Murch, técnico de som e fiel colaborador do cineasta (ainda agora em "Uma Segunda Juventude"), explicou a importância de que se revestia o sucesso de "O Padrinho", recorrendo a metáforas com barcos: "Nós só queríamos ter os nossos barquinhos a remos, fazer os nossos filmes de 700 mil dólares." Mas para garantirem que podiam levar os barquinhos a remos para o lago precisavam de um "barco a motor" que lhes abrisse o caminho - e o "barco a motor", para angústia de Coppola, foi "O Padrinho". Ajudou os seus amigos mais novos, mas tornou-se-lhe impossível voltar a brincar com barcos a remos. Coppola era "a big boy now", como no título do seu filme de 1966.

Quando tinha 8 anos de idade, sofreu de poliomielite e passou um ano em casa, acamado, sem poder mexer as pernas. Sozinho no quarto, entreteve-se a ler e a inventar brinquedos, e a encenar espectáculos de marionetas para ele próprio. Em 1988, entrevistado pelo "New York Times", dizia, comentando o seu afastamento de Hollywood: "A indústria precisa de tipos que estejam disponíveis para fazer o "Rambo 7" e o "Rambo 8", e eu preciso de ser um tipo sozinho, como era quando tive poliomielite." É mais do que certo que foi esse tempo da poliomielite que Coppola foi agora procurar à Roménia. Uma juventude sem juventude.