O charme obscuro da beleza

Agora, "Belle Toujours" assumese, explicitamente como uma homenagem a Buñuel e ao argumentista Jean-Claude Carrière, regressando, em filigrana, àspersonagens centrais de "Belle de Jour", quase quarenta anos depois, encenando não apenas o seuenvelhecimento, mas também uma espécie de duplicação distanciada e paródica do enunciado sadomasoquismodo original. Enunciação é o termo, uma vez queOliveira fica num território "neutro" de referências aos amores culposos de Séverine: resiste-se à citação, optando pela força da narrativa, num presente irónico e incómodo.

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Agora, "Belle Toujours" assumese, explicitamente como uma homenagem a Buñuel e ao argumentista Jean-Claude Carrière, regressando, em filigrana, àspersonagens centrais de "Belle de Jour", quase quarenta anos depois, encenando não apenas o seuenvelhecimento, mas também uma espécie de duplicação distanciada e paródica do enunciado sadomasoquismodo original. Enunciação é o termo, uma vez queOliveira fica num território "neutro" de referências aos amores culposos de Séverine: resiste-se à citação, optando pela força da narrativa, num presente irónico e incómodo.

A abertura (também no sentido musical do termo) estabelece na estratégia do campo/contracampo, a dualidade do projecto: de um lado, o palco do Grande Auditório da Gulbenkian, a grande teatralidade "sinfónica" de Oliveira, do outro, a plateia de um teatro, abrindo para o espaço dominante, uma Paris algo estereotipada, com a Torre Eiffel e o seu raio de luz "laser", a estátuadourada de Joana d''Arc, a claustrofobia de um bar, ou a sala reservada, marca de uma "belle époque" eterna, para a ceia de reencontro entre os dois parceiros da cerimónia ritual, um jogo da verdade, interrompido pela suspensão ficcional.

Se Michel Piccoli, também já um "habitué" no universo oliveiriano, regressa à sua personagem dopassado, a "recusa", nunca inteiramente clarificada, de Catherine Deneuve em retomar a sua Séverine traz a "Belle Toujours" inesperadas fulgurações ecomplexidades: Bulle Ogier (presença inesquecível em "O Meu Caso") não possuirá o carisma de Deneuve, mas a sua prestação elide a possibilidade de considerar o filme como uma sequela; por outro lado,esta presença dupla (Deneuve/Ogier) não deixa de remeter, de forma transversa, para o artifício queBuñuel adoptou no seu "opus" derradeiro, "Esse Objecto Obscuro do Desejo" - duas actrizes para ummesmo papel, desdobramento e variação infinita sobre a feminilidade transgressiva.

No entanto, o que é verdadeiramente genial nesteespantoso divertimento é o modo como se constrói o "racconto", numa recatada versão de câmara,sem nunca pormenorizar, nem fazer depender o novo filme do anterior, com o quadro de nu, à vista, comovinheta de uma relação metamorfoseada, tudo encenado ao pormenor, com o criado do bar (Benedetto, de sua graça, encarnado, com graça, por Ricardo Trepa, "bendito" intermediário da narrativa cifrada) e as duas prostitutas, uma velha e uma nova( Júlia Buísel, de novo em destaque, e Leonor Baldaque, presença constante dos últimos Oliveiras), a formarem adequado coro. As conotações eróticas desta revisita nunca ultrapassam os limites de umarepresentação "falsa", como se "Belle Toujours" estivesse sempre a um passo de "Belle de Jour", nuncao transpondo, definitivamente: as personagens são as "mesmas" e outras, num jogo requintado de"trompe l''oeil", sublinhado pelos biombos e pelas cenas galantes do restaurante privado, em que decorrea ritual "última ceia".

Por isso, tudo parece decorrer num ápice de tempo, sem que se desvende o mistério pretextual darevisita: sabia ou não o marido das "traições" da mulher?. Enquanto resposta, Oliveira "falha"propositadamente o projecto, esgotando-se na tentativa e construindo uma gigantesca elipse, um exercício de estilo sobre a hipótese da comédia de costumes: numa ambiência surreal (a inesperada aparição do galo, por trás da porta, incorpora emplenitude o bestiário buñueliano e rima, por absurdo, com o grande plano do olho do cavalo da estátua de Joana d''Arc), o mundo "moral" deBuñuel cruza-se com o universo "amoral" do Lubitsch de "Angel"; "Belle Toujours" ultrapassa o objectivo primeiro da homenagem e esboça uma releitura integrada de uma comédia matrimonial impossível, porque a morte e o envelhecimento inexorável tomaramposse da acção e dos seus peões.

Esta impossibilidade, razão de ser e motor da acção, explana-se na sábia gestão do "timing"cinematográfico: nem mais um minuto do que o estritamente necessário, com a noção perfeita domomento em que se deve terminar a "cerimónia". Se o móbil é a beleza e a sua permanência titular, o tomdominante é o do prazer obscuro de a procurar nas formas fílmicas, nos medidos planos fixos ou nomagnífico pequeno "travelling" sobre a estátua de Joana d''Arc. Porque as personagens, perdidas num tempo, sem tempo, são também belíssimas peçasde uma estatuária intemporal, motivos que o grande cinema de Buñuel criou e que o grande cinema deOliveira recria.