O grande embuste do preço das obras públicas

Os preços de boa parte das obras públicas em Portugal são feitos com base numa sucessão de mentiras. A começar no preço inicial ditado pelo dono da obra e a acabar nas propostas das construtoras.

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A Casa da Música e o Centro Cultural de Belém são dois dos melhores exemplos de derrapagens em obras públicas Paulo Duarte/AP (ARQUIVO)

Toda a gente sabe que é assim: desde os organismos do Estado e as câmaras, aos projectistas e construtoras. E todos aprenderam a viver num sistema em que a simulação, a hipocrisia e a mentira constroem uma nebulosa de interesses e conluios onde tudo é possível e o rigor orçamental sai de rastos.

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Toda a gente sabe que é assim: desde os organismos do Estado e as câmaras, aos projectistas e construtoras. E todos aprenderam a viver num sistema em que a simulação, a hipocrisia e a mentira constroem uma nebulosa de interesses e conluios onde tudo é possível e o rigor orçamental sai de rastos.

Está em curso mais uma tentativa de remediar um problema que, não sendo lusitano, ocorre "em maior escala e mais frequentemente" em Portugal, conforme assegura Reis Campos, presidente da AICCOPN, a maior associação de empresas de construção do país. O Instituto de Mercado de Obras Públicas, Particulares e do Imobiliário (IMOPPI) está a preparar alterações legislativas, designadamente sobre empreitadas e contratação de bens e serviços pela administração central. É uma boa ocasião para mergulhar no penumbroso mundo das obras públicas, tentando perceber as linhas com que se cosem os protagonistas ligados a empreendimentos onde se gastam anualmente centenas de milhões de euros saídos dos bolsos dos contribuintes.

Onde está o cerne do problema das derrapagens? Por vezes, refere Ponce Leão, presidente do IMOPPI, "a culpa é dos três" (da construtora, do projectista e de quem encomenda), mas importa "olhar com muita atenção para o projecto, e quem comanda o projecto é o dono da obra". O líder da AICCOPN vai mais longe: "O dono da obra não planeia bem, subavalia os custos e, por vezes, não sabe o que quer". Esta indefinição leva a uma das práticas mais frequentes nas câmaras - o efeito "já agora" -, como admitiu o autarca poveiro Macedo Vieira; trata-se de aproveitar a asfaltagem de uma rua, por exemplo, para, "já agora", mudar os postes de electricidade e as papeleiras, alcatroar as ruas adjacentes e por aí fora, subvertendo completamente o projecto e o custo iniciais.

Desvalorizar o projecto

Rui Furtado, da empresa de engenharia Afaconsult, fala em "subavaliações drásticas" dos preços das empreitadas feitas por quem lança o concurso, e Helena Roseta, presidente da Ordem dos Arquitectos, acusa mesmo os organismos públicos contratantes de fazerem uma "subavaliação deliberada e intencional dos custos finais, por razões que se prendem com as condicionantes orçamentais e com a aceitação pública das obras que se pretendem lançar" (ver texto de opinião). Em resumo, a grande mentira dos preços das obras públicas começa com a definição inicial, "política" e completamente irrealista, do valor das empreitadas. É uma forma de "resolver", com preços mentirosos, um problema tão simples como o levantado por Rui Furtado: "Se se dissesse, à partida, que o CCB ou a Casa da Música custavam 30 ou 40 milhões de contos, não se faziam!".

O segundo passo para o embuste dos preços está em projectos pouco rigorosos e incompletos. Um problema que decorre, em boa parte, da suborçamentação das obras por parte dos organismos públicos e do pouco investimento que é feito nas fases que antecedem as empreitadas, decisivas para o controlo dos custos.

A desvalorização do projecto pelo dono da obra pode ter consequências dramáticas. Para ganhar concursos e assegurar trabalho, os projectistas concorrem por preços "impossíveis", com base em tabelas de há três décadas actualizadas em 1986, e com descontos que chegam aos 50 por cento, disse ao PÚBLICO uma empresa do ramo. Resultado: depois do concurso ganho, ou as empresas arranjam maneira de chegar ao preço justo, ou recorrem a "soluções" rápidas de cálculo que, por falta de rigor e ao jogarem pelo seguro, implicam maiores gastos de betão, de ferro e outros materiais, provocando derrapagens que podem chegar até aos 30 por cento do custo da obra.

A ficção dos preços completa-se com as construtoras. "Para uma obra de três ou quatro milhões de contos, aparecem propostas de dois milhões ou pouco mais, porque o construtor sabe que, ganhando a obra, depois pode conseguir na secretaria algumas coisas", refere Reis Campos, da AICCOPN. A crise em que vive o sector potencia esta inclinação para propostas demasiado baixas, inferiores, em muitos casos, ao preço-base de referência que, em Portugal, é tido como um valor mínimo.

Gerardo Saraiva, líder da secção do Norte da Ordem dos Engenheiros, coloca a questão nos seus devidos termos: "Muitas vezes, as construtoras apostam o seu orçamento precisamente nas debilidades e indefinições do projecto". Assim, diz Reis Campos, "há obras paradas porque, mal o construtor pega na empreitada, entra quase imediatamente em conflito com o dono da obra", à procura de um furo para "corrigir" o preço. As centenas de faxes dirigidos ao dono da obra pela construtora da Casa da Música, ao tomar conta da empreitada, ilustra a estratégia de "criar casos" que abram a porta às revisões de preços, por trabalhos a mais e todo o tipo de expedientes que corrijam valores contratados demasiado baixos.