H.g. Wells e Orson Welles o espectáculo do medo

A história é conhecidíssima. Orson Welles integrava o Mercury Theater, um grupo de teatro (onde se incluiam muitos dos actores que depois Welles levaria para o cinema) que tinha uma rubrica semanal na rádio CBS dedicada à encenação de peças teatrais ou dramatização de textos de outra índole. Para essa noite, a obra escolhida era a novela (velha, então, de 40 anos) de H. G. Wells sobre uma invasão extraterreste. A história passava-se originalmente em Londres e arredores, no final do século XIX, Orson Welles decidiu dramatizá-la como algo que se estava a passar "aqui e agora" - ou seja, algures em New Jersey, não muito longe de Nova Iorque, e naquela mesma noite.

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A história é conhecidíssima. Orson Welles integrava o Mercury Theater, um grupo de teatro (onde se incluiam muitos dos actores que depois Welles levaria para o cinema) que tinha uma rubrica semanal na rádio CBS dedicada à encenação de peças teatrais ou dramatização de textos de outra índole. Para essa noite, a obra escolhida era a novela (velha, então, de 40 anos) de H. G. Wells sobre uma invasão extraterreste. A história passava-se originalmente em Londres e arredores, no final do século XIX, Orson Welles decidiu dramatizá-la como algo que se estava a passar "aqui e agora" - ou seja, algures em New Jersey, não muito longe de Nova Iorque, e naquela mesma noite.

Os ouvintes habituais da rádio (eram tempos, não esqueçamos, pré-televisão) já tinham alguma familiaridade com aquilo a que hoje se chamaria a "estética do directo", e a intenção de Welles, plenamente consciente, foi trabalhar dentro dessa estética, "ocupá-la" com teatro e com simulacro (ou, na sua própria terminologia, e como refere no seu filme sobre verdades e mentiras, "F for Fake", já nos anos 70, com "prestidigitação"). Mostrou aos seus actores a gravação da reportagem em directo do acidente do zeppelin "Hindenburg" (um dos primeiros grandes momentos do "directo" na rádio americana, em 1937) para lhes exemplificar o estilo de narração pretendido. E decompôs a história de Wells numa série de "flashes" informativos: ao longo de uma hora de emissão, o teatro transformava-se em "noticiário", num relato entrecortado da chegada e do avanço de hordas de marcianos que destruíam tudo o que encontravam pela frente. Os ouvintes, sobretudo os que falharam o início do programa (e perderam as referências à dramatização da história de Wells), entraram em pânico: duma audiência estimada em nove milhões de ouvintes, calcula-se que perto de dois milhões tenham reagido "activamente", fugindo, gritando, bloqueando as linhas telefónicas com chamadas para a polícia, etc. Até astrónomos da Universidade de Princeton (perto do local da suposta invasão) caíram na esparrela e levaram o assunto a sério.

O mundo descobriu o poder dos "mass media" como instrumento de manipulação simultânea de milhões de pessoas, e como fabuloso mecanismo de indução de pânico e alarmismo (lição que hoje é o bê-a-bá de qualquer canal de TV). Mas se Welles anteviu, em algumas décadas, o modelo de construção dos "directos" televisivos, as pessoas também aprenderam a desconfiar - três anos mais tarde, quando foi anunciado na rádio o ataque a Pearl Harbor e declaração de guerra ao Japão, toda a gente se lembrou de Welles. A Peter Bogdanovich (no livro-entrevista "This is Orson Welles"), o cineasta contou assim o dia 7 de Dezembro de 1941: "Estava numa emissão patriótica e foi interrompido a meio. Estava a ler passagens de Walt Whitman sobre quão bela era a América quando de repente há uma interrupção e é anunciado o ataque a Pearl Harbor - ora, aquilo parecia mesmo que era eu a tentar repetir a brincadeira". A incredulidade foi tal que Roosevelt, uns dias depois, enviou um telegrama a Welles comentando o caso, "something about "crying wolf" and that kind of thing". A linha entre "informação" e "espectáculo" fora definitivamente cruzada por Welles.

A popularidade da novela de Wells, portanto, está indissociavelmente ligada a Welles. A sua longevidade (quantos livros de ficção científica de 1898 dariam "blockbusters" em 2005?) em parte também, como consequência directa. Mas aí, há mais factores a ter em conta. O modelo narrativo de "Guerra dos Mundos", na sua simplicidade "arquetípica" (a Terra invadida por extraterrestres), estabelece um "medo básico" que ainda por cima facilmente se preenche com propriedades metafóricas. Sobretudo na segunda metade do século XX, inúmeros filmes de ficção científica americanos recriaram, com maiores ou menores variações, a situação elementar da novela de Wells. Só Byron Haskin, em 1953, e agora Spielberg, mantiveram o título e a referência expressa ao livro original, mas filmes como os três "Invasion of the Body Snatchers" (a versão de Don Siegel em 1956, a de Philip Kaufman em 1978 e a de Abel Ferrara em 1993), ou sobretudo o "Marte Ataca!", de Tim Burton e o "Dia da Independência" de Roland Emmerich são elaborações livres em torno da história de Wells. E isto para não falar em jogos de arcada e computador (haveria "Space Invaders" sem Wells?), nem nas incontáveis séries B americanas, dos anos 50 sobretudo, que glosaram o tema sob fundo de paranóia anti-comunista e medo do nuclear (a adaptação de Byron Haskin, em 1953, tem de resto muito a ver com este fundo): um inimigo externo, dissimulado, sem rosto identificável, que de repente está "dentro" e com rédea larga para a destruição total. A adaptação de Spielberg, pós-11 de Setembro, mostra que a função arquetípica da "Guerra dos Mundos" se limita a ir encontrando confirmações à medida que os tempos avançam.