Não, não é uma fábula "michaeljacksoniana"

"À Procura da Terra do Nunca" até vale mais pelo que evita do que pelo consegue. É sempre sinal de boa vontade defender um filme por estas razões. Mas expliquemo-nos: o filme de Marc Forster (autor do sobrevalorizadíssimo "Monster's Ball", que, lá está, deu o Óscar a Halle Berry) inspira-se na figura de J. M. Barrie (1860-1937), o dramaturgo escocês celebrizado por "Peter Pan", e o seu argumento conta a história da escrita dessa peça e do contexto pessoal, nela largamente reflectido, em que Barrie (interpretado por Johnny Depp) a escreveu. Um casamento a desfazer-se e uma relação (no filme, pelo menos, castíssima) com uma viúva (Kate Winslet) e respectivos filhos - que seriam, estes últimos, projectados nos heróis de "Peter Pan". Coisa que "À Procura da Terra do Nunca", com estes ingredientes, podia ser e não é: uma fábula "michaeljacksoniana" cheia de "magia" e "evasão" sobre um homem adulto que, perante fealdade do mundo, elege a eternização da infância e a persistência da "fantasia" como panaceia para todos os males. A tentação espreita, é verdade, e existe algures no filme como "subtexto" (é de resto, a "moral" de mais fácil extracção, é ver o final e a conversa de Barrie com o miúdo depois do funeral). Mas, imaginando que a grande luta do filme é uma luta para não ser a reiteração enjoativa dessa fábula, detectam-se dois factores decisivos.

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"À Procura da Terra do Nunca" até vale mais pelo que evita do que pelo consegue. É sempre sinal de boa vontade defender um filme por estas razões. Mas expliquemo-nos: o filme de Marc Forster (autor do sobrevalorizadíssimo "Monster's Ball", que, lá está, deu o Óscar a Halle Berry) inspira-se na figura de J. M. Barrie (1860-1937), o dramaturgo escocês celebrizado por "Peter Pan", e o seu argumento conta a história da escrita dessa peça e do contexto pessoal, nela largamente reflectido, em que Barrie (interpretado por Johnny Depp) a escreveu. Um casamento a desfazer-se e uma relação (no filme, pelo menos, castíssima) com uma viúva (Kate Winslet) e respectivos filhos - que seriam, estes últimos, projectados nos heróis de "Peter Pan". Coisa que "À Procura da Terra do Nunca", com estes ingredientes, podia ser e não é: uma fábula "michaeljacksoniana" cheia de "magia" e "evasão" sobre um homem adulto que, perante fealdade do mundo, elege a eternização da infância e a persistência da "fantasia" como panaceia para todos os males. A tentação espreita, é verdade, e existe algures no filme como "subtexto" (é de resto, a "moral" de mais fácil extracção, é ver o final e a conversa de Barrie com o miúdo depois do funeral). Mas, imaginando que a grande luta do filme é uma luta para não ser a reiteração enjoativa dessa fábula, detectam-se dois factores decisivos.

Que são estes. Primeiro, a permanência de um fio realista e gelado, ideal para contrapôr à tentação da fábula puramente escapista. Não estamos a falar da história da doença da viúva, resolvida em melodrama "gonflé" e pesadote, puxa-lágrimas destinado a reforçar a crueldade do mundo e a dar substância ao tal "subtexto" (como bem se vê na representação "privada" de "Peter Pan" para a viúva moribunda); mas antes da faceta de "crónica conjugal" do filme de Forster, com o relato (num momento ou noutro, com uma frieza de relatório) das progressivas distância e incomodidade de Barrie e da mulher (Radha Mitchell); ou da descrição dos problemas concretos da montagem da peça, e da sugestão do trabalho e dos artefactos que são precisos para sustentar a "fantasia". Gera-se um desconforto e uma rugosidade que equilibram o filme e equilibram a própria personagem de Barrie, com Depp a saber incorporar nela uma incomodidade que é mais do que a mera interpretação de "Peter Pan" como algo tipo "roman à clef" - e mesmo que o filme diga (ou faça por dizer) o contrário, a personagem de Barrie, a sua incomodidade é essa, parece ser a única a saber que a "fantasia" é uma mecânica, e uma mecânica de palco, nada mais.

Johnny Depp, claro, é o outro factor. Actor talhado para se fazer "política de actores": as suas personagens parecem ligadas, filme após filme, por qualquer coisa que transcende a simples gestão e exibição de uma "imagem". Ver essa "coisa" a trabalhar em "À Procura da Terra do Nunca" será, no fim de contas, a mais forte razão para se recomendar a espreitadela da praxe.