Fantasmas de Fantasmas

O filme situa-se durante a rodagem de "Nosferatu", como se disse, mais exactamente na altura em que Murnau e a sua equipa se deslocam à Eslováquia para rodarem as cenas de exteriores (todos, ou quase todos, os décores de "Nosferatu" são naturais, o que talvez explique que "A Sombra do Vampiro" comece com uma infeliz legenda a referir que o filme de Murnau é "o mais realista" filme de vampiros alguma vez feito), em que intervém o actor Max Schreck, intérprete da personagem do Conde Orlok, ou seja, Nosferatu.

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O filme situa-se durante a rodagem de "Nosferatu", como se disse, mais exactamente na altura em que Murnau e a sua equipa se deslocam à Eslováquia para rodarem as cenas de exteriores (todos, ou quase todos, os décores de "Nosferatu" são naturais, o que talvez explique que "A Sombra do Vampiro" comece com uma infeliz legenda a referir que o filme de Murnau é "o mais realista" filme de vampiros alguma vez feito), em que intervém o actor Max Schreck, intérprete da personagem do Conde Orlok, ou seja, Nosferatu.

É aqui, quando "A Sombra do Vampiro" podia acertar na mouche, que tudo começa a dar para o torto. Merhige aproveita as inúmeras lendas que durante anos correram sobre Max Schreck ("Max Arrepio", numa tradução à letra, o que muito contribuiu para as teses que defendiam tratar-se de um pseudónimo sob o qual se esconderia eventualmente o próprio Murnau) e leva-as ao limite: o "seu" Max Schreck (interpretado por Willem Dafoe) é mesmo um velho vampiro, recrutado por Murnau na ânsia do "realismo" anunciado pela legenda inicial. Podia haver aqui filme, tanto pelo lado "bubble gum" de misturar factos e figuras históricas com a mais delirante ficção, como pela possibilidade de construir um jogo espelhos e prolongamentos entre o "in" e o "off" de "Nosferatu".

Mas não há, nem por uma coisa nem por outra. Lamentavelmente, a personagem de Max Schreck é fraquíssima, inclusive em termos visuais: mesmo quem nunca tenha visto "Nosferatu" pode percebê-lo através dos "inserts" do filme de Murnau, e quem se lembrar de "Recordações da Casa Amarela" também percebe que João César "Max" Monteiro, com muito menos quilos de maquilhagem, conseguiu uma evocação muito mais fiel e perturbante do que a de Dafoe e de Merhige. Depois, a personagem de Schreck perde-se numa estrutura narrativa de comédia de situação, onde pouco mais se explora do que os efeitos mais superficiais da coexistência de um vampiro com uma equipa de "movie people". O resultado podia ser ridículo e grotesco, e Merhige conseguiu que o fosse - não se fica longe dos pastiches de Mel Brooks, se possível com menos graça.

O resto resume-se a uma colecção de cotoveladas para cinéfilos informados (e a algumas "gaffes" também, como a que dá Eisenstein, em 1921, como um grande cineasta, quando o seu primeiro filme, "A Greve", só veio uns anos depois) e a mais figuras históricas transformadas em "cromos", do produtor Albin Grau (Udo Kier) ao director de fotografia Fritz Arno Wagner (Cary Elwes). Dir-se-ia que Elias Merhige nem tem especial predilecção pelo filme de Murnau, porque não se consegue perceber em momento algum que exista algum prazer, mais ou menos fetichista, na "re-ritualização" das imagens e dos planos de "Nosferatu". E, o que é pior, exibe sempre aquele tom de superioridade com que o homem do final do século XX gosta de olhar o homem do princípio do mesmo século - a dada altura já nem sequer há "dessacralização", apenas patetice.

Apetece dizer que "A Sombra do Vampiro", pura e simplesmente, passa ao lado. Mesmo na bisbilhotice: a ver "Nosferatu" aprende-se mais sobre quem era Murnau do que na vertente "docudrama" do filme de Merhige.