Um saco à deriva

Nunca imaginei que um mero saco de plástico me pudesse levar tão perto de actos desesperados. Era quadrado, pequeno, transparente, daqueles que se usam nos aeroportos para provar que a pasta de dentes não é uma bomba.

Eu não o vi senão quando fechei o porta-bagagens. Tinha acabado de retirar do carro um saco de laranjas, mais algumas compras e a mala térmica do farnel, reocupada no regresso com duas cervejas. Foi nesta operação que o saco de plástico terá sido arrastado da bagageira, onde se encontrava no meio dos lixos diversos que ornam o automóvel.

Quando o avistei, já estava imobilizado sobre o alcatrão. Apanhá-lo implicava recursos anatómicos que não estavam disponíveis. Uma mão trazia a chave do carro e a axila homóloga aninhava o jornal do dia, inutilizando o braço direito para qualquer outra função. O esquerdo estava ocupado com as laranjas, as compras e o farnel. Seria preciso largar alguns objectos e arquear o tronco, operação de evidente risco vertebral, dado o peso da mochila que trazia às costas.

Além disso, estava com pressa – um das invenções mais nefastas da civilização contemporânea. Sob o falso consolo de que aquele bocado de polipropileno era praticamente invisível sobre asfalto preto, não fiz nada e segui para casa.

Arrependi-me amargamente quando começou a chover, um aguaceiro súbito e robusto. Debrucei-me sobre a varanda do apartamento para observar o dilúvio e um objecto reluzente despontou no canto do olho direito, rapidamente magnetizando toda a minha atenção visual. Era o saco de plástico, lá em baixo, agora reluzente, reflectindo a luz de um poste.

“Que grande idiota”, pensei. A chuva apertou e o saco começou a mover-se vagarosamente. Eu tinha de o deter, mas seria preciso descer oito andares em segundos. Era impossível. 

Fiquei a olhar, desesperado e com um pungente sentimento de culpa. O plástico desapareceu debaixo do carro e eu torci para que se agarrasse a uma roda. Mas não, despontou do outro lado e entregou-se à torrente na sarjeta, até ser impiedosamente engolido.

 “Nãããão!”, gritei. Não havia nada a fazer. Entregue às leis da física, aquele saco de plástico iria ser conduzido pela rede pluvial, desaguaria numa ribeira que já andou por ali e agora está soterrada pela urbe, e seria enfim ejectado para o mar.

 Os cenários de sobrevida do objecto eram arrepiantes. No mais moderado, regressaria à costa, dando à praia juntamente com os amigos que conheceu na viagem – garrafas de água, hastes de cotonete, pensos higiénicos, maços de tabaco, latas de refrigerante e outros sinais inequívocos da nossa existência.

As outras opções eram francamente piores. A imagem de uma tartaruga a engasgar-se ou a de uma ave enforcada com aquele plástico iria perseguir-me para o resto da vida. Ou então o saco terminaria os seus dias aprisionado numa daquelas ilhas de lixo que existem no mar alto, fraccionando-se lentamente até ser ingerido aos bocados por organismos marinhos que, mesmo longe das cadeias de fast food, teriam assim a infeliz possibilidade de experimentar comida de plástico.

Com tudo isso na cabeça, dei por finda a minha reputação sustentável, declarando-me vítima irrecuperável de insanidade ecológica. E quando já pensava que era o fim e que nada mais restara, felizmente a chuva parou, a lua ressurgiu no firmamento e eu me lembrei das duas cervejas no farnel. Foi por pouco.

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