Ruína auditiva no comboio

Para o trabalhador cansado, são incontestáveis os benefícios terapêuticos do comboio. O indivíduo vem do emprego fisicamente apático, psicologicamente moído e intelectualmente vazio. Tudo o que quer é afundar-se no assento e deixar-se levar, subordinado ao balanço da composição. Freud aí veria, além de sexo, um claro regresso à infância, a carruagem como uma representação do berço.

Mas eu lá queria saber de Freud! Passava das dez da noite, o capitalismo selvagem já tinha dado cabo do meu bem-estar naquele dia e foi a arrastar os pés que venci o percurso até à estação. Àquela hora, o panorama no cais de embarque era um misto de ocaso e alvorada. Alguns vinham da jornada laboral, prontos a dar o dia por terminado. Outros estavam a despertar para a noite de sexta-feira, prontos a mergulhar na festa.

Foram dois representantes deste último grupo da taxonomia urbana que me chamaram a atenção. Vinham alegres, condição essencial para o desenvolvimento sustentável mas não a qualquer custo. Um deles divertia-se com uma chamada telefónica cujo conteúdo não reproduzo, por elementar respeito ao decoro. Falava alto, para todos ouvirem, produzia jactos de riso com tal espalhafato que fiquei em dúvida se não estava a sofrer algum tipo de espasmo. Era um idiota clínico.

Numa manobra táctica, afastei-me do par na hora do embarque. Mal me sentei, no entanto, os dois emergiram da carruagem adjacente, com a carga sonora amplificada pela geometria interna do comboio. Tomaram o assento imediatamente atrás do meu.

Não ia dar certo. A palavra sossego não constava do vocabulário social de ambos, sobretudo do idiota clínico. Levantei-me e fui para a carruagem seguinte. Não passou um minuto e ei-los de novo a andar pelo corredor, debitando excelências do pensamento contemporâneo.

Felizmente seguiram adiante e desapareceram. Aliviado, nem notei no passageiro que entrara na estação anterior, sentando-se atrás de mim. Conspurcou imediatamente o silêncio com uma pastilha elástica: nham-nhac-nhac, nham-nhac-nhac – sempre dois “nhac” para cada “nham”. Eram guilhotinadas autênticas, revelando grande comando mandibular.

Tive de me mudar novamente, mas apenas para identificar, numa fila de assentos à frente, um adolescente em transe músico-cerebral. Tinha auscultadores nos ouvidos, provavelmente no máximo, extravasando os dejectos da música, isto é, aquele ruído metálico indistinto e acutilante que não permite saber o que está a tocar, mas que se entranha no cérebro dos circundantes, arruinando-lhes a paciência.

Transitei para uma nova posição, no momento em que o comboio fazia mais uma paragem. E ouço às minhas costas um recém-chegado:

– “Pronto, já cá estou no comboio. Já posso falar” – disse e nunca mais se calou, partilhando uma rocambolesca história ao telemóvel.

A esta altura, eu já estava determinado a mandar a sustentabilidade à fava e passar a vir de carro para Lisboa. Mas a noite ainda não tinha acabado. Em cada mudança de lugar deparava-me com uma nova forma de poluição acústica. Uma mulher que quase gritava ao telefone. Um jovem com longas rastas a assobiar irritantemente. Um pai que ralhava com a filha – a única personagem inocente em toda esta história. A mãe que ralhava com o pai por ralhar com a filha.

Quando dei por mim, já tinha chegado à primeira carruagem do comboio. Ainda pensei em solicitar asilo sonoro ao maquinista. Mas felizmente chegara ao meu destino. A composição parou, com aquele insuportável ranger das rodas sobre os carris, e eu desci, ou melhor fugi, em completa desgraça auditiva.

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