Quase metade dos futuros psiquiatras tem ideias suicidas

Inquérito feito em Portugal a internos de psiquiatria. “Não sabemos se a ideação suicida foi causa ou consequência da escolha da carreira”, diz coordenador de artigo publicado em revista científica

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Um em cada cinco internos teve alguma familiar que se tentou suicidar; 4,3% dizem que também o fizeram Manuel Roberto

“Já alguma vez pensaste que seria melhor se morresses?” — quase metade (43,5%) dos futuros psiquiatras portugueses dizem que sim. “Já alguma vez pensaste em cometer suicídio?” Um terço responde afirmativamente. E 4,3% dizem que chegaram mesmo a elaborar “um plano” para morrer, tantos quantos os que afirmam que sim, já tentaram matar-se  — mas isso, antes de iniciarem a sua especialidade. O artigo Comportamento suicidário nos internos de psiquiatria em Portugal: comparação com a realidade europeia foi coordenado pelo psiquiatra João Gama Marques e pela pedopsiquiatra Ana Moscoso e publicado na última edição da revista Acta Médica Portuguesa.

O ponto de partida foi um questionário estruturado e anónimo, enviado por e-mail aos 159 internos de psiquiatria de adultos e de psiquiatria da infância e da adolescência do país — ou seja, clínicos que se encontram num período de formação pós-graduada tendo em vista a obtenção do grau de especialista.

Pretendiam os autores saber quais os antecedentes pessoais de ideação suicida dos internos e quais os antecedentes familiares. As perguntas feitas fazem parte do Estudo BoSS (Burnout Syndrome Study) que é realizado em 21 países, incluindo Portugal. Responderam 62 futuros psiquiatras (40,3% do total) com uma média de idades de 29 anos.

O contexto está descrito logo no primeiro parágrafo do artigo publicado na revista científica da Ordem dos Médicos: apesar da prevalência do suicídio em Portugal “parecer ser subestimada, em 2010 registaram-se 1098 óbitos por suicídio, sendo actualmente a primeira causa de morte não natural”; o número de suicídios manteve-se, de resto, estável entre 2011-2012, mas “o Instituto Nacional de Emergência Médica verificou nesse período um acréscimo relevante (41%) de pedidos de ajuda para evitar potenciais casos suicidas, situação que merece a reflexão da sociedade”, escrevem os autores.

Há estudos que apontam para um risco maior de suicídio nos médicos do que na população em geral, “facto que vem sendo discutido desde a década de 70 do século passado, existindo no entanto ainda significativa controvérsia acerca da frequência destes comportamentos: verificar-se-á de facto o dobro da prevalência da população geral ou estarão estes resultados inflacionados por erros metodológicos?”

João Gama Marques e restantes autores centraram-se em particular nos médicos internos de psiquiatria que “lidam com pacientes com sintomas depressivos e comportamento suicidário na sua prática clínica, o que pode constituir um factor de stress acrescido”.

Síntese das conclusões: “A ideação suicida estava presente na forma passiva em 44% dos inquiridos e na forma activa [expressa na resposta à pergunta 'Já alguma vez pensaste em cometer suicídio?'] em 33%.” Em relação à história da família, 22% dizem que houve tentativas de suicídio entre os seus familiares de 1.º grau e 13% relatam casos de “suicídio consumado”. Os resultados obtidos “assemelham-se aos dados internacionais e indiciam que existe uma maior vulnerabilidade nos internos de psiquiatria face à população geral, contudo não nos permitem concluir que os internos de psiquiatria têm um nível superior de comportamentos suicidários face aos internos de outras especialidades”.

Excesso de trabalho e burnout
“Não podemos estabelecer com segurança uma relação de causalidade”, diz João Gama Marques em declarações à Lusa. “Não sabemos se a ideação suicida foi causa ou consequência da escolha da carreira médica e/ou psiquiátrica. No entanto, sabemos que 4,3% dos inquiridos tentaram, de facto, o suicídio, e que essa tentativa foi realizada (em todos os casos) antes da entrada para a especialidade de psiquiatria”.

Para João Gama Marques, é curioso que “nenhum dos inquiridos tenha admitido uma tentativa suicida após a entrada para a especialidade de psiquiatria, de onde se poderá especular algum efeito protector”.

Questionado sobre os factores específicos a que esta população está exposta, o médico diz que alguns são “muito semelhantes aos que afectam os médicos internos de outras especialidades, nomeadamente excesso de carga horária, más condições de trabalho, insatisfação profissional, desilusão pessoal, que muitas vezes condicionam o aparecimento da chamada exaustão laboral (síndrome de burnout)”.

Gama Marques alerta para alguns estudos internacionais que têm revelado que os médicos estão de facto muito vulneráveis ao suicídio. “Isto é particularmente preocupante para as médicas, que têm um risco de cometer suicídio muito superior às restantes mulheres da população. Esta realidade tem-se verificado noutros países, mas em Portugal ainda não há estudos que permitam fazer um diagnóstico rigoroso da situação.”

Sobre o impacto da carga laboral, o psiquiatra nota que os médicos internos estão particularmente vulneráveis, porque estando na base da pirâmide hierárquica, acabam por ter que assegurar uma série de tarefas clínicas: consultas, cirurgias, urgências ou enfermaria”.

Além disso, porque estão numa “fase inicial da carreira”, estes profissionais “têm também muito trabalho formativo, de vertente mais académica ou teórica: estudo constante, artigos científicos ou apresentações em congressos”. Geralmente “têm pouca qualidade de vida e podem desenvolver a síndrome de burnout, que só por si aumenta o risco de depressão e consequentemente o risco de ideação ou comportamento suicida”. com Lusa

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