Liderança, supermulheres, mitos e contraditórios

É urgente desfazer os mitos sobre as supermulheres e os estereótipos em torno da liderança no feminino.

Recentemente, alguns media têm veiculado a mensagem de que as mulheres estão a chegar aos centros de decisão, exaltando mitos e estereótipos de género. Assim sucede com o mito da supermulher – essa imagem de uma mulher qualificada, competente, flexível, cumpridora de tarefas múltiplas, apostada no exercício do poder político e/ou empresarial, de notável inteligência social, extraordinária na gestão da vida privada e pública, irradiando realização profissional e pessoal.

Passou recentemente uma peça televisiva onde o imaginário de supermulheres era alimentado por quem nunca conviveu com a discriminação, que não se revê nas causas feministas, que recusa ser inimiga de si própria. É como se o teto de vidro – essa barreira que impede as mulheres de ocupar os lugares cimeiros das organizações – fosse construído e cimentado pelas próprias, por aquelas a quem falta autoestima, confiança, flexibilidade e competência. O argumento dominante era o de que o tempo se encarregará naturalmente de efetivar a igualdade de oportunidades e de tratamento. Haja mérito, confiança, determinação, capacidade de criar as próprias oportunidades e de recriar os contextos de autorrevelação. Haja, também, essa capacidade tão feminina de nunca descuidar o papel de mãe e o enternecimento dos afetos, o cuidado com a aparência, de não adiar afazeres profissionais ou familiares, de nunca faltar ou falhar mesmo perante circunstâncias inesperadas. As mulheres com uma carreira bem-sucedida acompanham com elevada motivação as principais notícias sobre a bolsa, o estado da nação e os grandes desenvolvimentos no plano internacional, investindo na capacidade de manter conversas atualizadas e interessantes durante os cocktails, os almoços e os jantares. Nunca hesitam na demonstração de total disponibilidade para as viagens de negócio, para ultimar relatórios ao final da tarde ou de madrugada, para prescindir de feriados e fins de semana. Nunca deixam esmorecer o contentamento pelos dias que nunca acabam, pelas noites de cinco horas, pelo breve sono dispensado, pela comodidade dos saltos altos (metáfora muito apreciada para anunciar a chegada das mulheres à esfera da decisão).

E se houvesse interesse no contraditório? Sabemos que Portugal é um dos países da UE com menos mulheres a ocupar lugares de decisão na esfera económica, que as profissionais mais qualificadas auferem praticamente menos 30% do que os homens em situação comparável, que são muitos os obstáculos ao reconhecimento das qualificações e ao progresso profissional das mesmas. Em 2013, havia 256 pessoas a integrar os conselhos de administração das empresas privadas cotadas em bolsa (PSI-20), mas apenas 18 eram do sexo feminino. Os valores não são animadores nas empresas no setor privado ou mesmo no setor empresarial do Estado, apesar de todas as recomendações, orientações políticas e obrigações. Esta é uma situação que se perpetua à revelia da racionalidade económica, da justiça social, de contextos favoráveis à meritocracia, do direito à realização profissional e pessoal. O desenvolvimento pleno de um país carece da participação das mulheres, em igualdade com os homens, em todos os domínios – e, portanto, também nas esferas de decisão da vida económica. Sou favorável à adoção de medidas de natureza vinculativa orientadas para uma representação equilibrada nos lugares estratégicos, assim como reconheço a importância de instrumentos de autorregulação. Presentemente, um dos desafios passa pela elaboração de planos para a igualdade nas organizações, começando pelo diagnóstico da situação e passando à elaboração de um plano de intervenção que vise corrigir as assimetrias identificadas. Procura-se, portanto, eliminar os estereótipos de género, promover práticas de dessegregação sexual (horizontal e vertical), de conciliação entre a esfera profissional e a vida familiar, apoiar a maternidade e a paternidade, e promover o valor da igualdade na cultura organizacional, consubstanciando-o nas rotinas diárias de trabalho, nas práticas quotidianas de todas as equipas, níveis hierárquicos, sectores ou departamentos.

Considero, ainda, que é fundamental trazer para o centro do debate todo o pensamento crítico já produzido e a fundamentação extraída dos vários trabalhos de investigação. Não se trata de negar o sucesso profissional de algumas mulheres, mas sim de o enquadrar nas suas trajetórias familiares, posições de classe e recursos individuais, de apelar a um levantamento rigoroso dos constrangimentos organizacionais, da influência exercida pelos enquadramentos institucionais, políticos, legislativos e socioeconómicos. As investigações científicas demonstram que, também neste segmento profissional, existem mulheres e não supermulheres. São muitos os depoimentos que expõem sacrifícios diversos e elevados custos pessoais. A retórica em torno das supermulheres é ainda perigosa porque nos desvia do essencial: da necessidade de rever os modelos de organização do trabalho, as culturas, as rotinas, as estruturas e os estilos de gestão tradicionais. Passa também ao lado da discussão em torno da redistribuição equilibrada das responsabilidades familiares, da partilha efetiva do cuidar. Tenho defendido que as mulheres e os homens podem e devem ser parceiros nesse projeto de mudança, em nome da igualdade, da justiça, do bem-estar, do aprofundamento da dignidade humana e da melhoria da qualidade de vida. Para já, é urgente desfazer os mitos sobre as supermulheres e os estereótipos em torno da liderança no feminino. Retornarei ao sentido do contraditório.

Professora e Investigadora do ISEG, Universidade de Lisboa, Ex-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

 

 

 
 
 

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