João diz que esteve dois dias à espera de ser operado por ser seropositivo

João sofreu uma fractura exposta no braço e conta que ouviu o médico e o enfermeiro dizerem que não operavam seropositivos. Apresentou uma queixa que foi arquivada por falta de provas.

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Ao nível das intervenções cirúrgicas, o documento refere a realização de 178.540 programadas (menos 1851) Enric Vives-Rubio

João esteve dois dias em jejum à espera de ser operado a uma fractura exposta no braço. No primeiro dia disseram-lhe que estavam à espera de equipamento, ferros e parafusos, no segundo dia ouviu o cirurgião e o enfermeiro a dizer que não operavam seropositivos. Apresentou queixa por discriminação. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) interveio. O Hospital de Cascais responde apenas que “a queixa deu entrada na IGAS e que, após os trâmites normais nestes processos, foi arquivada”. Na altura, o hospital informou que não conseguiu identificar os profissionais de saúde em causa, lembra o coordenador do Centro Anti-Discriminação VIH/SIDA, Pedro Silvério Marques.

“Ainda hoje me custa contar, ainda ouço a voz”. Qualquer cirurgia exige jejum. Por causa da espera, era o segundo dia sem comer e João, recepcionista de 50 anos, “estava numa maca, nu, coberto com uma manta térmica metalizada”, depois de, no dia anterior, ter entrado no bloco operatório e ter sido mandado de volta à enfermaria. Foi em Outubro de 2011. No segundo dia voltou a entrar no bloco operatório e voltou a sair. Desta vez, ouviu o cirurgião e o enfermeiro a falar numa salinha ao lado, o médico dizia “não opero seropositivos, não opero parasitas”. João é seropositivo há 22 anos, deixou de ser toxicodependente há 15 anos. “Senti-me impotente, senti-me humilhado, numa maca, completamente nu”.

Foi para ao hospital na sequência de uma fractura grave no braço direito, que aconteceu quando andava a passear a cadela. Embora tivessem a sua ficha clínica, uma vez que era seguido no departamento de infecciologia do hospital por ser seropositivo, o enfermeiro veio perguntar-lhe de que patologias ele sofria e ele respondeu, “HIV, hepatite C, edema pulmonar”. “É só?”, disse o enfermeiro. “Fez as perguntas com ar de gozo, de desprezo”.

João, que vive em Carcavelos, fez primeiro queixa no gabinete de apoio ao utente do hospital. Mais tarde foi ouvido pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. O processo foi arquivado em 2013. “Não há provas”. O adiamento da cirurgia no primeiro dia ficou oficialmente a dever-se à espera dos ferros para colocar no braço fracturado e dos parafusos, no adiamento no segundo dia disseram-lhe que tinha sido deixado para último, por necessidade de desinfecção do bloco operatório, lembra João.

Pedro Silvério Marques, coordenador do Centro Anti-Discriminação VIH/SIDA, que funciona no âmbito da SER+ Associação Portuguesa para a Prevenção e Desafio à SIDA, diz que a queixa de João foi, de entre as várias que receberam na área de saúde, a que envolveu uma situação de “discriminação mais objectiva. Foi a recusa mais ostensiva de prestação de cuidados de saúde que nós tivemos”. O responsável lembra que a queixa levou a uma inspecção e que o hospital nunca identificou o médico e enfermeiro, "a IGAS emitiu recomendações de boas práticas, com vista ao respeito pelo doente". Ninguém foi responsabilizado, critica.

Pedro Silvério Marques diz que ainda é possível ouvir médicos a defenderem publicamente que é obrigação dos doentes seropositivos informarem os médicos da sua infecção, para se poderem defender. “Há quem expresse esta opinião abertamente. Os médicos têm se proteger de qualquer forma”.

O responsável lembra que quando surgiu o caso de um cirurgião infectado com HIV, caso revelado pelo PÚBLICO em 2007, a Ordem dos Médicos veio defender o médico dizendo que este poderia continuar a operar sem quaisquer limitações e que tinha direito à sua privacidade, mostrando com esta decisão “uma dualidade de critérios”, defende o coordenador.

A Ordem dos Médicos criou, em 2009, o Regulamento sobre os Profissionais Médicos Seropositivos e a Prática de Procedimentos Invasivos, onde se prevê que "médicos, nomeadamente especialistas em áreas cirúrgicas, seropositivos para o VIH, podem continuar a praticar procedimentos invasivos e intervenções cirúrgicas". No documento lê-se que “a transmissão do VIH coloca em risco os profissionais da Saúde envolvidos em procedimentos invasivos. De igual modo, os doentes submetidos a actos médicos invasivos, ficam expostos à infecção pelo VIH. No entanto, não estão descritos casos de transmissão de VIH por médicos, desde que sejam cumpridas as práticas clínicas adequadas e os cuidados universais praticados em ambiente hospitalar.”

O Centro Anti-Discriminação VIH/SIDA recebeu de 2010 a 2014 um total de 147 casos. Pedro Silvério Marques nota que é nos serviços de saúde (25,85% do total de casos) que existem mais situações de queixas de discriminação relacionadas com o VIH.

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