A nova vida da fruta

Há outras formas de comer fruta. E passam pelos laboratórios.

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Mário Nunes pega num lingote de pêra-rocha e coloca-o no bolso. É uma barra de fruta prensada envolta em papel dourado e vendida à unidade ou em caixinhas a lembrar bombons. “Conseguir colocar uma pêra no bolso é genial!”, exclama, sem esconder o entusiasmo. Num saco de papel, traz ainda maçã desidratada às rodelas, ou “delícias de pêra”, lascas da fruta do Oeste de cor castanha e a lembrar frutos secos. A Frutaformas já ganhou um prémio de inovação atribuído nos Nutrition Awards do ano passado graças aos lingotes de pêra que Mário consegue guardar no bolso.

Juntamente com João Azevedo, produtor agrícola, lançou-se no negócio da transformação de fruta em Outubro de 2012, depois de testes e experiências junto dos amigos e família.

“O João já tinha esta ideia há, pelo menos, cinco anos, inspirado nos avós. Antes, todos secavam ao sol a fruta que sobrava das colheitas para que no Natal não faltassem à mesa as maçãs. O que quisemos foi aplicar o conceito de desidratação de fruta e dar-lhe prestígio pela embalagem e pela emoção que possa despertar”, conta. A pequena empresa do Bombarral emprega quatro pessoas e o negócio está a dar os primeiros passos, sempre focado na utilização de 100% fruta nos produtos, sem corantes, aditivos ou açúcares para responder a uma das grandes tendências do mundo de hoje: a alimentação saudável.

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A fruta está a sair da tradicional zona dos frescos dos supermercados, das caixas onde se alinha brilhante e quase simétrica, para ocupar novos espaços. Primeiro, foram as pequenas garrafas que prometem conter o equivalente a uma peça de fruta. Depois, criaram-se zonas para a fruta já cortada, embalada e pronta a consumir. Agora, na zona dos snacks, ao lado das batatas fritas, há pacotes de fruta desidratada. E ainda longe dos olhares dos consumidores, nos laboratórios e empresas, também há um novo e colorido mundo. Barras que juntam puré com pedaços de fruta ligados com gelatina vegetal, bolas de melancia perfeitas que seguem os mesmos princípios da cozinha molecular, sumos de vinagre de fruta, morangos desidratados em forma de estrela ou coração.

As novas formas de comer fruta também estão a responder a uma sociedade cada vez menos disponível para perder tempo. A necessidade de conveniência fez nascer novos produtos à base de fruta — e por isso tidos como saudáveis. Não é preciso descascar, sujar as mãos, não pesa, não se estraga, guarda-se no bolso.

“No mercado de snacks não existem alternativas saudáveis. Há produtos com sal e açúcar e os que não têm sal ou açúcar são pouco atractivos, de nicho. Quando lançámos o Fruut quisemos concorrer com os snacks, não com a fruta”, diz Filipe Simões, que divide o capital da Frueat (dona da marca de fruta desidratada) com a Sociedade Agrícola Quinta de Vilar. Oito meses depois do lançamento no mercado, foram vendidas 700 mil embalagens, acima das 350 mil previstas para o primeiro ano de comercialização. A facturação foi de 600 mil euros e a previsão é chegar aos 1,5 milhões de euros este ano. “Em 2014, tudo aponta para um volume superior a 1,5 milhões de embalagens”, diz Filipe Simões. Angola e Espanha são países onde a marca está a ser vendida (20% do negócio é feito nos mercados internacionais) e este mês estará nas prateleiras das lojas do Reino Unido. Há ainda perspectivas de exportar para a Roménia, Rússia e França.

Mas estas novas formas de comer fruta surgem também numa altura em que, ao contrário de todas as recomendações e tendências, o consumo em Portugal caiu drasticamente entre 2009 e 2012, de 120 quilos per capita, para 107 quilos. “O consumo de fruta corresponde a 12% da ingestão de alimentos, contra os 20% que são recomendados, e a apenas 7,7% da despesa média das famílias com produtos alimentares”, descreve Domingos Almeida, professor no Instituto Superior de Agronomia que tem dedicado parte da sua investigação às áreas da biologia e tecnologia pós-colheita de frutas.

Em Freixofeira, Torres Vedras, o administrador do grupo Luís Vicente, Manuel Évora, dá pistas para ajudar a explicar esta queda. Diz que há uma forma de olhar para a fruta que não tem ajudado a aumentar o seu consumo e, em consequência, as vendas. “É vista como sobremesa. E nestes anos de crise, deixámos de comer sobremesa. Não cortámos nos legumes, mas a fruta deixámos de lado”, explica, defendendo que é preciso mudar a mensagem e fazer com que este alimento seja incluído nos lanches escolares.

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Fábrica do grupo Luis Vicente em Feixofeira, Torres Vedras

A gigante empresa portuguesa tem um orçamento global de 60 milhões de euros para 2014, emprega 200 pessoas (a que se juntam 150 em função dos picos de actividade), produz fruta em Portugal, no Brasil, na Costa Rica. Está também em Angola, Holanda, Espanha com estruturas logísticas, administrativas e comerciais para a distribuição de frutas e legumes.

Depois de anos de experiência na produção agrícola, investiu recentemente numa fábrica de fruta cortada e pronta a consumir. A criação da Nuvi Fruits começou com um investimento de dois milhões de euros na nova unidade, mas há planos para a construção de outra fábrica, desta vez, de fruta desidratada da marca Frubis. Este produto já está no mercado desde Agosto de 2013 e, por enquanto, é produzido fora de Portugal. Depois de estar concluído o investimento de três milhões de euros na nova fábrica de fruta crocante, a estimativa é, em 2016 produzir e comercializar oito milhões de embalagens de Frubis. Entre a fruta descascada e pronta a consumir e a Frubis, a Nuvi Fruits prevê facturar quatro milhões de euros este ano.

Juntar à fruta natural fruta preparada ou transformada era “inevitável”. “A sociedade moderna tem menos tempo para preparar fruta. E há o fenómeno em Portugal de queda no consumo. Ao mesmo tempo, há cada vez mais pessoas a viver sozinhas. Vão comprar um abacaxi inteiro?”, questiona Manuel Évora. Novas necessidades levaram o grupo a criar novos produtos e marcas. “Não há tempo? Então aqui está, uma caixa de fruta cortada. A fruta não é boa? Então aqui está”, ilustra o gestor, que também é presidente da Portugal Fresh, associação que promove o sector hortofrutícola.

A chamada “quarta gama” (produtos frescos, lavados e prontos a consumir) explodiu nos últimos anos com as alfaces e legumes, mas está a demorar mais tempo a descolar no caso da fruta. De acordo com Domingos Almeida, neste tipo de produtos, a fruta representa menos de 5% das vendas. Ainda assim, o grupo Luís Vicente acredita que é possível fazer crescer o mercado. Fornece para as grandes cadeias de distribuição ou empresas de catering de companhias aéreas e, em breve, para o mercado espanhol.

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“Foram sete anos a construir o negócio e tem havido uma evolução gradual”, diz Tiago Cardoso, responsável pela Nuvi Fruits. A maior evolução tem sido feita na embalagem, agora, termo-selada para aumentar em dois a três dias o prazo de validade, medida essencial para a exportação. Dentro da nova fábrica, a fruta chega inteira. Cerca de 75% é abacaxi, fornecido pelo grupo Luís Vicente. Uma máquina descasca e tira o tronco central deste produto, que é depois cortado em pedaços à mão por duas trabalhadoras. Estão sete graus na sala luminosa, onde se alinham caixinhas de fruta embalada. As cascas das maçãs e das pêras são mantidas porque “é onde estão a maior parte dos nutrientes”, vai dizendo Daniela Ribeiro, responsável pela qualidade e gestão técnica.

Mas maiores oportunidades de expansão internacional estão no negócio da fruta desidratada ou crocante. “Um dia quero ver as pessoas com embalagens de Frubis no cinema em vez de pipocas”, admite Manuel Évora. Este ano, as previsões são ambiciosas: vender dois milhões de embalagens.

Pode um pacote de fruta desidratada substituir de forma equivalente a maçã verdadeira? Não. “Nem era bom que assim fosse”, defende Domingos Almeida. E exemplifica: um pêssego natural tem 12% de açúcar; num pêssego desidratado a percentagem sobe para os 85%. “Perde-se água, a vitamina C praticamente toda, alteram-se os antioxidantes lipossolúveis e há um enriquecimento de açúcar”, continua. Além disso, “seria péssimo para a competitividade da fruta portuguesa”. “A nossa fruta tem cor e sabor superiores à do Norte da Europa. E tenho dúvidas de que o processo de transformação seja uma forma de acrescentar valor”, diz, referindo-se ao preço que é pago, por quilo, aos produtores e que é muito inferior quando a fruta se destina à indústria. Ainda assim, sublinha que o crescimento destes negócios pode ajudar a escoar fruta que não tem espaço nos supermercados, nomeadamente, porque não obedece aos parâmetros negociados (como o calibre, por exemplo).

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Filipe Simões, da Frueat, também separa as águas. Os snacks que comercializa não são a fruta do futuro. “A fruta do futuro será a do passado. É a mesma. Mas hoje há grandes flagelos como a obesidade, doenças cardiovasculares, a diabetes e há cada vez mais intolerâncias alimentares. O consumidor é cada vez mais consciente e olha para as tabelas nutricionais. Hoje sabemos que comer um pacote de batatas fritas é mau”, argumenta.

Ana Gomes, investigadora que faz parte de uma equipa de seis pessoas dedicadas ao estudo da fruta na Escola de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto, esclarece que na transformação de uma matéria-prima como esta nunca se consegue obter “o valor nutricional máximo que a fruta natural nos dá, cortada e consumida no momento”. “É a melhor forma de consumir, do ponto de vista nutricional e de prazer. Claro que não podemos fugir aos estilos de vida de hoje e, quando não é possível, há estas novas alternativas”, sustenta.

No laboratório, a fruta também está a nascer com outros formatos. Cláudia Lopes, 25 anos, trabalha há quatro na Frutech, o Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Frulact, empresa que fornece preparados de fruta para lácteos, gelados ou pastelaria e tem sete fábricas em Portugal, França, Marrocos, África do Sul e outra prestes a arrancar nos Estados Unidos. Foi ela quem concretizou a ideia de um dos trabalhadores de criar fruta em forma de coração ou estrelas. O FruShape está patenteado e esteve dois anos em estudo e três em desenvolvimento. “Experimentámos várias técnicas, estudámos todo o equipamento piloto e a aplicação deste produto e estamos agora na fase de o apresentar aos clientes”, conta.

Cláudia Lopes, formada em Bioquímica Alimentar, está a pesar os ingredientes para fazer uma “formulação de laranja”. Na mesa, há tubos e caixas com concentrado de laranja, corantes, aromas ou amido, usado como espessante. Depois de pesados, os ingredientes são misturados e pasteurizados numa espécie de panela. Quando estão prontos, e antes de serem enviados para o cliente, são provados e validados. Testam-se aromas, cores, texturas, sabores, num ambiente de batas brancas e toucas. Cláudia Lopes diz que nos últimos anos há uma “tendência para ter produtos cada vez mais naturais”. “Desenvolvemos cada vez mais clean label”, diz, referindo-se a formulações sem aditivos. “Há uma preocupação grande com o valor nutricional da fruta. Este é um pressuposto do consumidor e do cliente”, acrescenta.

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O grupo Luís Vicente tem um orçamento global de 60 milhões de euros

Entre inovação e desenvolvimento, trabalham neste centro da Frulact cerca de 40 pessoas. E é na unidade de inovação que se faz o trabalho criativo, menos pressionado com a chegada ao mercado. Na manhã em que a Revista 2 visitou a Frutech, um grupo de trabalhadores participava numa formação em aromas, dedicada ao morango. Há centenas de odores diferentes e é preciso treinar o olfacto para identificar os mais maduros, cremosos, frutados ou verdes.

Noutra sala, alinham-se copos com bolinhas coloridas. Pilar Morais, directora de inovação da Frulact, mostra-nos as Bubble Tea, esferas de fruta com o centro líquido que podem ser usadas na indústria de bebidas. É um dos três produtos patenteados pela empresa, a par do FruShape e das Powerballs (esferas à base de fruta mas, consistentes, para aplicação em bebidas e produtos alimentares). Outro dos projectos em estudo é a criação de novas bebidas de vinagre de fruta, uma parceria com a Mendes Gonçalves, dona da marca Paladin, que conta com um financiamento do QREN.

“O nosso trabalho na inovação é sair fora da caixa. Na área do desenvolvimento, há produtos menos disruptivos”, diz João Miranda, presidente do conselho de administração e dos fundadores (juntamente com o pai) da Frulact.

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Em média, a Frulact investe 2,6% do volume de negócios anual (110 milhões de euros o ano passado) em investigação e desenvolvimento. A tecnologia é necessária para garantir a segurança alimentar de um iogurte quando é adicionada fruta, mas, tal como Cláudia Lopes já tinha dito, a grande tendência é a autenticidade. “Se o consumidor conseguir ter um produto industrial com o fruto fresco, é isso que vai escolher”, resume João Miranda. “Ao nível dos processos, estamos cada vez mais a encontrar soluções para que se eliminem fases e cada vez mais se respeite o que são as características do fruto fresco”, continua.

Pilar Morais, a directora de inovação, acredita que haverá sempre espaço para a fruta fresca, mas “nem sempre isso é possível”. “Há aqui uma oportunidade para a indústria, sempre respeitando a naturalidade, a autenticidade. Estes produtos são complementares. Podem substituir um snack menos saudável por um saudável. E quanto mais parecido com a fruta fresca, melhor”, defende.

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No campeonato da inovação, outra empresa portuguesa também tem vindo a conquistar prémios dentro e fora de portas. A barra de fruta da Nutrigreen, que junta puré, pedaços de fruta e gelatina vegetal, esteve debaixo dos holofotes em feiras internacionais e está a ser desenvolvida pela empresa de Torres Vedras desde 2009. O salto para o mercado só deverá acontecer em Setembro. “Tem sido difícil de concretizar. Funciona em pequena escala, mas replicar em larga escala é mais difícil”, conta Lídia Santos, administradora da Nutrigreen, que produz sumos naturais e saladas prontas a consumir para a grande distribuição. Nos últimos dois anos, o investimento em novos produtos cifrou-se em 20 milhões de euros e a ambição é levar a fruta a toda a população, “mantendo todas as suas características”, adianta. Para cativar as crianças, embalaram puré de fruta em forma de morango ou banana. E estão a desenvolver um projecto de produção de polifenóis naturais, micronutrientes presentes na fruta com poder antioxidante que podem ser usados na indústria cosmética, farmacêutica ou alimentar.

As novas formas de comer estes alimentos essenciais também não conseguem competir com uma peça de fruta natural pela forma como escolhemos e seleccionamos estes produtos. Domingos Almeida recorda que a decisão de comprar fruta está ligada ao hemisfério direito do cérebro. É emocional. “É a parte sensorial, das memórias, das experiências. Nos produtos transformados, a ligação emocional perde-se”, conta. Talvez seja por isso que a investigação tem dedicado esforços à preservação do aroma da fruta, que se degrada facilmente depois do corte.    

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