Memórias de Família

Memórias de Família

O sino que não cabia

Domingos Lopes Pereira e a sua mulher no dia do casamento

Os dois filhos partiram de Covelo de Gerês para a guerra ao mesmo tempo. A mãe, Carolina Rosa Gonçalves, ficou na aldeia sem nada saber mas decidiu fazer o que podia pelo seu regresso tornando pública a promessa de que, se voltassem os dois filhos sãos e salvos, mandaria construir o sino que passaria a tocar no campanário a Igreja. São Bento faria por isso.

 Cada um de sua vez, regressaram, bem. Primeiro Manuel Lopes Pereira, e depois Domingos Lopes Pereira. Fez-se festa para assinalar o seu retorno, mas havia que pagar a promessa. Todo o dinheiro que a família tinha não chegava para pagar o sino prometido. Para isso venderam uma terra, um lameiro, que é como se chamam às terras húmidas, que ficava num sítio chamado no Alto da Lomba e lá mandaram então fabricá-lo.

Uma vez concluído o sino, este devia ser colocado na igreja, mas era demasiado grande e não entrava no campanário. O milagre, o regresso dos filhos da Casa da Forja, tinha que ser anunciado, dizia a família, disso fazia parte a divida para com São Bento.

Reza a história familiar que se mandou rachar um carvalho ao meio e montar uma estrutura de madeira para pendurar o sino, para se poder ouvi-lo tocar. E ele ali terá ficado anos, até que a madeira, carcomida pelo tempo, cedeu e o sino caiu. Ao cair danificou-se e partiu-se, já não badalava, razão pela qual foi então vendido.

Manuel Miranda, neto de Manuel Lopes Pereira e trineto de Domingos Lopes Pereira vive fora de Portugal mas quis saber mais sobre esta história da sua família. Na aldeia conseguiu saber que um senhor tinha recebido os restos do sino, tendo-se mandado fazer um novo, agora no nicho.

Manuel Miranda contou à historiadora Margarida Portela, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que em 1913 os dois mancebos partiram, junto com outros jovens de Covêlo do Geres (distrito de Vila Real), para prestarem serviço militar, só depois foram para a guerra, em África e em França.

O irmão Manuel Lopes Pereira, nascido a 5 de Junho de 1893, partiu para Angola em 3 de Fevereiro de 1915, desembarcando em Moçâmedes. Da sua estadia ali pouco se sabe. No entanto Manuel Miranda ouviu a história de que, para além dos ataques possíveis dos alemães, a sede era tanta que, um dia, Manuel Lopes terá bebido excrementos de um animal. Sabe-se depois que desembarcou em Lisboa a 15 de Outubro de 1916. Casou no mês seguinte, tendo tido 10 filhos. A guerra na França precisava entretanto de mais homens. Desembarcou em França em 31 de Maio de 1917, onde esteve até ao seu regresso, a 28 de Fevereiro de 1919.

Depois da guerra foi sempre agricultor, vivendo em Covelo e trabalhando as suas propriedades, de onde tirava, não sem dificuldades, o rendimento que lhe permitia sustentar a família, contou o seu neto. Tinha dois filhos com deficiência, um deles surdo-mudo. “Manuel Lopes Pereira foi, depois da guerra, um dos muitos esquecidos pelas autoridades, abandonado à sua sorte, sem que lhe tenham alguma vez providenciaram qualquer tipo de melhoria na sua vida, como o não fizeram com tantos outros combatentes por Portuga”, escreve a historiadora Margarida Portela.

Viria a falecer, muitos anos depois, em 1990, com 97 anos. Segundo Manuel Miranda, a sua participação no conflito era um grande orgulho, comprovado pela sua dupla condecoração, com medalhas de cobre que atestam operações no sul de Angola, e a sua presença em França, combatendo contra os Alemães em La Lys.

Os relatos dizem que chegou à sua aldeia quando se semeava o milho. Seu irmão tornaria algum tempo depois, quando já se cortava o milho.

Domingos Lopes Pereira voltava quando se começava já a temer por falta de notícias suas. Tinha embarcado para França em 22 de Abril de 1917, de onde só regressou em 20 de Março de 1918. Teve uma relação por essa altura com uma senhora, do qual teve a sua única filha, falecidas não muitos anos depois em Lisboa. Domingos decidiu-se então a partir para o Brasil, em 1921. Ali casou, às vésperas da sua morte, a 30 de Março de 1931.

Na opinião da sua mãe, ele e o irmão, com percursos de vida tão diferentes, contaram sempre com a protecção de São Bento.

 
 

   


 

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