O rapaz da caixa de pastéis

Havia, de facto, algo diferente nessa manhã. O rapaz sentiu-o, mas não o soube identificar.

Numa manhã de Abril, há 40 anos, mais precisamente no dia 25, um rapaz de 14, levando nas mãos uma caixa de pastéis, em passo não tão ligeiro quanto o patrão gostaria, descia a Trindade e entrava no Largo do Carmo em direcção à leitaria que, se a memória não me trair, se chamava “A Primorosa” (naquele tempo as leitarias homenageavam as vacas que lhes forneciam o leite).

Este ritual semanal, quase diário, fazia parte das tarefas no restaurante e pastelaria do Bairro Alto, onde trabalhava. A noite ficava para a escola, ali bem perto, na Veiga Beirão. Fosse o jovem mais ligeiro no andar, como o patrão exigia, e os pastéis chegariam quentes ao destino. Ainda assim, conseguiam chegar morninhos e saborosos. Metade da carga era deixada na Primorosa. O restante era entregue num restaurante bem perto da Rua dos Bacalhoeiros, onde anos mais tarde um amigo brasileiro apresentaria o rapaz dos pastéis, feito homem, ao melhor e único sumo guaraná de Portugal. Palavra de brasileiro. Esta novidade e muitas outras iriam surgir na terra sombria onde vivia o rapaz da caixa dos pastéis e este estava muito longe de imaginar que seria exactamente aquela estranha manhã a causadora de tanta novidade e mudança.

Havia, de facto, algo diferente nessa manhã. O rapaz sentiu-o, mas não o soube identificar. A Primorosa estava fechada, o que era invulgar. Desceu depois o Chiado e atravessou a Baixa até ao lado oposto, perto dos Bacalhoeiros, onde ficava o restaurante que o aliviaria de parte da carga que entretanto começara a pesar mais que o normal. Reparou nas ruas demasiado desertas, mas foi no regresso, carregando a caixa ainda cheia de pastéis, pois também encontrara o outro restaurante fechado, que, ao olhar em direcção ao Terreiro do Paço, deparou com os tanques, carros de combate que só vira em filmes. Enormes. Gigantes!

Ainda não havia cravos. Havia pessoas, soldados e um silêncio pesado substituíra o habitual trânsito barulhento das manhãs. O rapaz não se deteve e, carregando de volta a caixa cheia de pastéis, regressou ligeiro ao Bairro Alto, onde o patrão lhe disse então que uma revolução tinha começado. A revolução dos pastéis dera lugar à revolução dos cravos. E o rapaz depois feito homem sorriu e agradeceu. Falta só dizer que o rapaz da caixa de pastéis era eu.

Músico-agricultor

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