Memórias de Família

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O avô sobreviveu dentro de um bote à deriva

O navio português Augusto Castilho foi bombardeado por um submarino alemão Miguel Madeira

O vídeo a preto e branco dura cinco minutos, não tem som, chama-se Afundamento do Augusto Castilho. O filho de Esperança Matos encontrou-o por acaso na Cinemateca Digital e mandou o link à mãe. Foi filmado em 1918 por alemães que quiseram deixar registado para a história as imagens daquele sobrelotado bote salva-vidas a afastar-se no mar, talvez para depois tentar saber que destino teria. As caras dos homens mal se distinguem, é lusco-fusco, as ondas reflectem a luz mas Esperança Matos sabe: “uma das personagens daquele bote é o meu avô”, José Batista Martins, diz ao PÚBLICO.

Ela era jovem quando o avô morreu, em 1986, mas sempre ouviu aquela história do avô marinheiro que fez parte dos sobreviventes que resistiram ao afundamento do navio caça-minas português Augusto Castilho, depois de ter sido bombardeado por um submarino alemão, em plena Primeira Guerra Mundial. Morreram no confronto seis pessoas, incluindo o comandante, mas os alemães condoeram-se daqueles portugueses, conta Esperança Matos.

Os feridos ainda receberam tratamento ministrado pelo médico do navio alemão e deram-lhes um bote salva-vidas para que chegassem a terra, “embora em muito mau estado”, contava o avô, "e umas bolachas, e mandaram-nos à vida". Depois os alemães ficaram a filmar o pequeno barco a desaparecer no meio das ondas, deixado à sua sorte. “Os alemães eram poderosos e podiam tê-los matados a todos, mas deixaram-nos ir”, diz Esperança de Matos, que conta que os alemães quiseram dar uma ultima oportunidade de sobrevivência aos portugueses. “Tiveram respeito por aqueles homens que eram como que uma formiga em luta contra um elefante”.

O que aconteceu nos dias seguintes dava um filme. “Era uns a remar e outros a tirar água”. Alguns dos homens estavam feridos dos bombardeamentos, outros foram ficando doentes, desidratados, “um deles começou a ter ataques e tiveram que o lançar ao mar. A sobrevivência falou mais alto”, contava o avô de Esperança Matos.

Chegaram a terra e o avô acabou por voltar à sua aldeia natal, feito herói, “com as crianças a mandarem-lhe flores, o chão atapetado. Eu era criança e lembro-me”. Mais tarde a Marinha Portuguesa homenageou o avô, tendo-lhe erigido uma lápide na sua terra natal - Fragoso, concelho de Barcelos.

O Portal da Marinha atesta a aventura. Diz que o Augusto de Castilho era um arrastão de pesca a vapor que tinha sido requisitado pelo Governo Português durante a guerra, classificado como patrulha de alto mar, “tendo sido  um dos navios portugueses que mais encontros teve com submarinos alemães.”

Em 21 de agosto de 1918 estavam a dar vigilância a um vapor de passageiros, o San Miguel, do Funchal para Lisboa, com nevoeiro denso, “avistou nas proximidades do Cabo Raso, às 6h30 um grande submarino alemão em meia imersão, rompendo fogo contra ele. Apesar de começar a navegar a toda a velocidade, foi atingido por três granadas."

No dia 23 do mesmo mês, novamente foi perseguido por outro submersível. Pouco mais de dois meses, em 14 de Outubro de 1918, foi bombardeado e afundou. Mais uma vez, patrulhava o paquete San Miguel, com passageiros e carga, em viagem da Madeira para os Açores. “Pelas 6 horas da manhã, um submarino de enormes dimensões, conforme o relato dos sobreviventes, atacou o paquete: era o U-139, um cruzador-submarino armado com duas peças de 150 mm, cujo alcance era muito superior às do Augusto Castilho, tendo-se este colocado entre o paquete e o submarino apesar da sua manifesta inferioridade.

Os sobreviventes, alguns deles feridos, embarcaram no salva-vidas e no bote do navio e conseguem percorrer os cerca de 370 quilómetros que os separavam da ilha de São Miguel. O salva-vidas encontra-se hoje preservado no Museu de Marinha, refere o portal oficial. Esperança  Matos conta que em 1968, 50 anos depois do combate, os seus avós foram numa viagem pelo Atlântico depositar uma coroa de flores no local de combate.
 

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