Miguel Galvão Telles: ousar pensar

Se tivesse de escolher uma palavra para o Miguel Galvão Telles, escolhia a palavra liberdade.

Já depois, no dealbar dos anos 90, no ambiente circunscrito dos colóquios e seminários de direito público, que oscilavam entre Coimbra e Lisboa, fui-me cruzando amiúde com ele. E nesses cruzamentos, cara a cara, em palavra dita para o auditório ou em conversa lateral, era já ostensiva a marca da sua genialidade, da sua originalidade, da sua densidade. Assim surgiram as nossas primeiras conversas, muito à volta de divergências quanto ao sistema de governo português, muito em torno de diferenças acerca da natureza das ordens jurídicas hodiernas, muito à roda de um abismo epistemológico sobre a essência e o lugar do Estado nas actuais comunidades políticas.

2. Até que um dia, nos idos de 2004, estando eu em funções governativas, resolvemos convidar o Miguel Galvão Telles para chefiar o grupo de trabalho que deveria preparar o então muito controverso Pacto para a Justiça. Convite que logo aceitou, sem rebuço nem reticência, sem qualquer pedido ou exigência, apenas com a vontade de trabalhar, desinteressadamente e sem qualquer proveito, para uma reforma que ele, sem veleidades ingénuas, reputava de fundamental. A seguir às sessões de trabalho com um punhado notável de juristas, vindos de todas as profissões jurídicas, ficávamos os dois – geralmente na companhia do terceiro elo deste triângulo, o Pedro de Sousa Machado – horas e horas à conversa, ora sobre política, ora sobre teoria da Constituição, ora sobre justiça. E nessas tardes, nesses fins de tarde, junto a uma janela com vista para o Terreiro do Paço, aprendi a conhecer não apenas o jurista genial, mas também o ser humano de excepção. Cruzar-me-ia ainda muito com ele, por entre a tournée das ditas conferências de direito público e por entre alguns dos imperativos profissionais da advocacia, mas nada que se possa comparar ao desfrute, em regime de quase exclusividade, daquelas conversas soltas e longas no Ministério da Justiça. Recordo como ponto cimeiro, já depois de ter cessado funções no Governo, a preparação de um debate no CEJ sobre um eventual referendo ao Tratado Constitucional – debate esse organizado por Anabela Rodrigues, na altura directora do CEJ, em que ao Miguel cabia a defesa do “não” e a mim cabia a defesa do “sim”. As conversas que precederam esse embate e o argumentário que ali esgrimiu revelavam não apenas um domínio soberbo da teoria do Estado e afins, mas outrossim uma intuição quase profética das desditas europeias.

3. O seu conhecimento enciclopédico e aparentemente inesgotável das matérias do direito impressionava de sobremaneira. E, quando digo do direito, digo de qualquer ramo do direito. Sendo notório que cultivava o direito público, a verdade é que conhecia os meandros do direito privado (societário, bancário e quejandos) e do direito processual com uma profundidade irrepreensível. Tinha, de resto, um conhecimento perfeito do sistema de justiça, raro, muito raro, num intelectual (mesmo que advogado) com as suas apetências. Era, todavia, o seu modo de pensar e o seu modo de raciocinar que verdadeiramente surpreendiam e faziam a diferença. Com efeito, a interiorização da “racionalidade jurídica” tinha atingido nele uma radicalidade e uma maturidade tais que o habilitava a pensar juridicamente em qualquer ramo e a ser capaz de ver a questão do avesso, de ousar e de inovar nas soluções. Enquanto os outros não eram capazes de sair de uma visão dos problemas a duas dimensões, ele trazia sempre à discussão, ao escrito ou à peça processual uma perspectiva nova, uma luz tridimensional. E, tendo em atenção a importância que deu ao tema do “tempo” e da “temporalidade” nos seus escritos, pode até dizer-se que não minguaram as vezes em que juntou à terceira a luminosidade de uma quarta dimensão.

Sobressaía particularmente o seu fascínio pelo Estado enquanto forma que as comunidades humanas encontraram de se organizar politicamente. Considerava o Estado, à maneira de Buckardt, uma “obra de arte”, admirava as conquistas e os progressos que havia permitido e acreditava na imprescindibilidade do Estado nacional. De há muito que andava apreensivo e perplexo com a debilitação progressiva do Estado e com a insegurança, incerteza e imprevisibilidade que isso trazia à vida dos cidadãos e à vida internacional. Era aqui e por aqui que mais vezes divergíamos.

4. Miguel Galvão Telles, apesar ou por causa deste fulgor e brilho, desconcertava, era profundamente desconcertante. Desconcertava pela sua simplicidade, pela humildade com que escutava a opinião do outro, pela naturalidade com que abordava os temas mais difíceis. Desconcertava pelo modo pueril com que casava a bonomia com a ironia e pelo modo maduro com que recusava todo o cinismo sem arriscar qualquer ingenuidade. Desconcertava pela imensa liberdade que de si emanava. A liberdade de ousar. De ousar pensar. Se tivesse de escolher uma palavra para o Miguel Galvão Telles, escolhia a palavra liberdade. Está escolhida. Liberdade.

SIM e NÃO

SIM. Eleições gregas. O civismo com que correu a campanha merece registo. A ruptura com o sistema partidário tradicional, firmado numa oligarquia de tipo familiar, é democraticamente saudável.

NÃO. Eleições gregas. A vitória de um programa de esquerda radical, mesmo que “retocado”, é motivo de preocupação e de incerteza e abre a porta aos extremismos na Europa. A coligação com um partido eurocéptico é um mau prenúncio.

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