Alguém que o aproveite

Já foi prisão de homens condenados a trabalhos forçados, casa de telégrafo, recebeu parte dos serviços da Guarnição Militar do Porto e a Tesouraria Geral das Tropas. Agora, o antigo edifício do Governo Civil prepara-se para uma nova vida.

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Hoje é dia de eleições legislativas e o cérebro tem destas coisas: quando procurava encontrar um tema que se adequasse a dia tão solene, lembrei-me, automaticamente, do antigo edifício do Governo Civil do Porto. Afinal, antes da extinção do cargo de governador civil, decretada em 2011, este era o representante do Governo da República nos distritos desde a criação daquela figura, em 1835. E, no Porto, a primeira casa do Governo Civil foi o imenso edifício da Rua de Augusto Rosa, que hoje está ainda — adivinhem — abandonado.

Sempre achei o antigo Governo Civil um edifício enorme. É um prédio comprido, de fachada sóbria, pintada de branco, com a excepção da parte central, em granito escuro e com um frontão no cimo. Foi ali que tirei o meu primeiro passaporte e ainda tenho a memória de entrar com algum nervosismo, perante uma experiência totalmente nova como era aquela.

Mais tarde, quando comecei a trabalhar, aquela já não era, para mim, a casa do Governo Civil (ele sairia dali em 2001), mas sim do Comando Metropolitano da PSP do Porto, que durante alguns anos também por ali andou. No jornal, uma das minhas primeiras funções foi “ir à polícia”, uma tradição dos jornalistas “de cidade”, entretanto desaparecida. Nós, os que “íamos à polícia”, encontrávamo-nos todos numa sala, onde um agente depositava os mapas das ocorrências do dia anterior, para que pudéssemos seleccionar as que nos interessavam. Depois, pedíamos que nos fosse dada informação sobre algum crime mais violento ou incomum, e o agente de serviço lá lia as participações referentes ao caso, dando-nos os pormenores que podia.

O edifício do Governo Civil passou assim a ser, para mim, a sítio onde eu ia à procura de notícias, sem fazer ainda ideia que, um dia, andaria a escrever notícias sobre o edifício. Porque ele, que já não estava nas melhores condições há 17 anos, acabaria por ficar muito pior. O Governo Civil saiu, o Comando da PSP mudou-se para o Largo 1.º de Dezembro, ao fundo da rua, e o velho prédio construído para uma função que nunca exerceu passou a ser figura recorrente nos jornais, pelas péssimas condições que oferecia a quem ainda lá se mantinha — um dos últimos a sair foram os funcionários da divisão de Trânsito.

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Na fachada do antigo edifício do Governo Civil de Lisboa, cuja primeira pedra foi lançada em 1792, está pendurado um aviso de licenciamento para obras ?e o abandono ?é visível

Nos últimos anos tem estado de portas fechadas, a deixar-se cair, a ver se alguém se lembra de o aproveitar. A resistir, porque um edifício cuja primeira pedra foi lançada em 1792 não se quer desaparecido, como se nada fosse, da paisagem da cidade. Património do Estado, foi posto à venda em 2010, mas só foi comprado no ano passado. Diz-se agora que o aviso de licenciamento para obras de “alteração” pendurado na sua fachada será para transformar o espaço num centro empresarial e comercial low-cost.

O edifício não há-de ser esquisito na selecção da ocupação que lhe queiram dar. Afinal, ele foi construído para albergar a Casa Pia do Porto, mas nunca chegou a exercer tal função, acabando por desempenhar muitas outras funções. Foi prisão de homens condenados a trabalhos forçados, casa de telégrafo, recebeu parte dos serviços da Guarnição Militar do Porto e a Tesouraria Geral das Tropas, além de, por um curto período de tempo, no século XIX, os próprios Paços do Concelho. Já com o Governo Civil ali instalado, foi também a casa de vários outros serviços, como a direcção das Obras Públicas do Norte, a Junta de Saúde Pública do Porto ou a Comissão Inspectora do Salva-Vidas.

Com tanta actividade, o edifício precisou de ser aumentado e, para que ele crescesse, demoliu-se o que ainda ali restava da muralha fernandina. Em 1847, contudo, o edifício foi assolado por um violento incêndio que o deixou parcialmente destruído. Dois anos depois estava reconstruído e novamente alargado, pronto para continuar as suas múltiplas funções. 

A comprida fachada é pouco mais do que uma cicatriz, que nos recorda a actividade que ali já existiu. A tinta cai das paredes brancas, dos caixilhos em madeira das janelas, onde faltam vários vidros, das portas que já foram de um verde uniforme. Agora que parece haver quem o queira aproveitar, vamos esperar para ver se o antigo edifício do Governo Civil volta à vida, sem perder a identidade que conseguiu manter ao longo dos seus séculos de história.

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