A Terra está em si bemol?

Afinal a Terra está é em dó, modulando para lá de vez em quando.

“Por favor mantenham o silêncio. Podem se sentar ou deitar no degrau, mas não andem sobre ele”, disse a rapariga à entrada do pavilhão circular. Devia ter uns dez metros de diâmetro – o pavilhão, não a rapariga, é claro –, com absolutamente nada lá dentro, a não ser um orifício ao centro e uma plataforma elevada que corria por toda a borda, junto às paredes envidraçadas. Só se via um casal, ela sentada sobre o degrau, de olhos fechados, ele deitado sobre as costas, com os braços abertos, em êxtase místico.

Todo aquele conjunto arquitectónico, instalado no topo de um monte, com 360 graus de vista para o horizonte ondulado de Minas Gerais, estava consagrado a um buraco. Não um buraquinho qualquer, mas um furo com 202 metros de profundidade, no qual foram implantados vários microfones de modo a captar o som da Terra.

Para melhor absorvê-lo, optei pela horizontalidade, embora inadaptada à digestão do almoço recém-consumido. Para quem não conhece, a comida mineira extrapola a preferência brasileira pelo feijão, ali servido em tutu – onde a leguminosa combina-se com farinha de mandioca, temperos picados e linguiça, formando uma argamassa de franco poder explosivo. Se os visitantes não têm cuidado, dão cabo da obra sonora do artista norte-americano Doug Atiken, autor daquele Sonic Pavillon.

O som da Terra vinha do buraco em ondas aleatórias. Amplificado, era assustador. A descrição que li depois na Internet retrata-o como “um padrão nunca repetitivo, rico em frequências e texturas, que remete à música minimalista de Terry Riley e Steve Reich”. A mim, pareceu-me um sismo. Se acordasse no meio da noite com aquele ruído, metia-me debaixo da cama.

Como não o podia fotografar – circunstância de insuportável ansiedade para um turista – tentei memorizá-lo. Uma frequência em particular se sobressaía. Lá fora, cantei-a a uma das minhas filhas que sempre leva um diapasão na mala. Era si bemol.

Regressei e gravei o som. E repassando-o em casa, dei conta de que desafinara quando reproduzi as entranhas do planeta com as minhas falíveis cordas vocais. Afinal a Terra está é em dó, modulando para lá de vez em quando.

Não estava à espera de algo musicalmente tão vulgar. A normalidade modal do par dó-lá destoa da confusão que andamos a semear no globo. Quando a NASA lançou em 1977 as sondas Voyager – que desde então vagueiam no espaço – incluiu na bagagem discos de ouro com diversos sons da Terra, de cândidos passarinhos e lacónicas rãs a ruidosos automóveis, comboios e aviões a jacto. É uma pequena amostra da balbúrdia cá em baixo, que nós, terráqueos, entendemos partilhar com outras formas de vida inteligente. Se tiverem mesmo cabeça, fundirão o ouro antes de chegar à última faixa.

Existem por aí algumas gravações do alegado som da Terra a partir do espaço – um contra-senso, pois se há coisa que inexiste no mundo celestial é barulho. São, na verdade, interpretações sonoras de ondas magnéticas, que dão resultados mais tenebrosos que o do buraco de 202 metros.

Há uma inquietação no mundo criativo em relação ao tema. Uma artista multimédia holandesa foi mais fundo e registou os rugidos da Terra a nove quilómetros de profundidade, na República Checa. Também monetizou o resultado, transportando-o para uma galeria. Mas, em termos sonoros, saiu-se com algo muito parecido com o rumor do Sonic Pavillon de Inhotim, Brasil. Pelo jeito, a Terra não gosta de mudar de tom.

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