A agenda da liberdade

A agenda da liberdade de que necessitamos, neste país de medos, vai muito para lá da violência policial.

Ainda assim, é importante garantir desde já o reconhecimento de que Portugal tem um problema de direitos e liberdades fundamentais. E temos um “problema sobre o problema”: há em Portugal a ideia de que estas são questões para pobres ou para ricos, mas não para um país à rasca como nós. Para os pobres, porque esses são os países onde há presos políticos, censura, pena de morte. Para os ricos, porque esses são os países que, tendo resolvido boa parte dos problemas que nos apoquentam, se podem dedicar às altas questões da liberdade. Para nós, é como se fossem um luxo. Como sabemos, não há vida para lá do défice.

Consideremos a violência policial. O país viu clara e finalmente que há quem, nas forças policiais, não saiba interpretar o seu mandato de uso da força. Mas há anos que toda a gente minimamente atenta tem alertado para que isto não é um acontecimento remoto, mas um problema recorrente à espera de ser encarado.

Ora, de cada vez que alguém lembra que o uso da força policial deve ser sempre sujeito a uma avaliação de proporcionalidade, de oportunidade e necessidade, surgem as objeções, muitas delas razoáveis na aparência, mas irremediáveis na sua essência. O uso da força descontrolada, sem provocação, é uma exceção? Mau seria se não fosse — mas é suficientemente recorrente para que seja reconhecida como um problema. Há países onde é pior? Certamente, mas isso não nos impede de lidar com esse problema no nosso país. Também há agentes policiais íntegros e bem preparados? Ótimo, queremos que assim sejam todos. As forças policiais estão por vezes sujeitas a situações de muita pressão? Claro que sim; é parte do seu trabalho.

Nenhuma destas objeções impede que deitemos mãos a uma obra necessária: estabelecer objetivos de formação, ter claras metodologias de avaliação e excluir do uso da força todos os que não respeitem da forma mais estrita os princípios que devem reger a sua utilização. É uma exigência alta? Tem de ser.

Aquilo que o país viu em Guimarães não é raro. Raro é ser filmado. De acordo com relatos na imprensa e nas redes sociais, os casos de violência policial são recorrentes, e recorrentemente mascarados por autos em que as vítimas são acusadas de injúrias ou resistência. Mas de cada vez que a polémica abranda há uma certa inibição em lidar com este tema. As pessoas de bem acham que não fica bem.

A agenda da liberdade de que necessitamos, neste país de medos, vai muito para lá da violência policial. Passa pelo combate à intimidação no local de trabalho, pela afirmação da autonomia individual contra a subserviência às hierarquias nominais, pelo direito a ser criança sem sujeição intimidatória e humilhante. Passa, acima de tudo, pelo reconhecimento de que o exercício dos nossos direitos é ainda difícil em Portugal — e que não ficará mais fácil a não ser através da insistência, teimosa e permanente, numa agenda política da liberdade.

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