O factor “estabilidade”

Radical por radical, antes o Bloco de Esquerda e o PCP do que o PS.

1. A grande questão dos próximos meses será obviamente a estabilidade governativa. A coligação, desde o início da campanha, revelou abertura para fomentar a estabilidade, quer ganhasse, quer perdesse. O PS, ao contrário deu todas as indicações no sentido de não favorecer a estabilidade no caso de perder as eleições.

E a verdade é que as perdeu fragorosamente, sem apelo nem agravo. Mostrou-se incapaz de atrair o eleitorado descontente com os quatro anos de execução do programa de ajustamento, imposto pela troika. Fez uma campanha voltada para a captação do voto útil da esquerda radical, mas acabou por sofrer o impacto da síndrome de que os eleitores preferem o original à imitação. Radical por radical, antes o Bloco de Esquerda e o PCP do que o PS. E, com isso, deixou no olvido os eleitores do centro, que eram os únicos que poderiam ter-lhe dado uma vitória. Nessa radicalização, não havia nem houve lugar para a apologia da estabilidade e do compromisso. O regresso do PS à realidade e, por conseguinte, à preocupação com a estabilidade chegou só ontem à noite na intervenção de António Costa, muito mais moderada e apurada (e maquiavelicamente sofisticada) do que os discursos que proferiu em campanha. Eis a pergunta que se impõe: o que terá determinado essa viagem de Costa da radicalidade – melhor, do radicalismo – até à realidade?

2. Quem ouviu o discurso da noite eleitoral, deu-se conta decerto de que Costa, assumindo nominalmente uma derrota, falou com a “superioridade” de um vencedor, recorrendo abundantemente à ironia. Perante o ultimato do Bloco e da CDU, que logo anunciaram o seu veto a qualquer governo da coligação, procurou desenhar uma terceira via em que, afinal, seria o PS quem tinha o joker, quem punha e dispunha, quem tinha a faca e o queijo na mão. E com esta estratégia e a consecutiva pose, dava a ilusão de que havia ganhado ou vencido qualquer coisa. Se não fosse mais nada, teria sido essa posição política de ser o senhor do jogo, o master da partida. Deixava doutrina e recados para a esquerda radical, afastando os cenários de “maioria de bloqueio”. E deixava lições e pressões para a sua direita, procurando vender cara – ou, pelo menos, parecer que vende cara – a abstenção “viabilizadora” do PS. O PS impediria assim a coligação de governar com o seu programa “mais puro”, obrigando-a a transaccionar com as suas propostas. Em poucas palavras, Costa havia sido derrotado, o PS havia perdido, mas a concreta correlação de forças saída das urnas entregava a Costa e ao PS a chave ou as chaves do jogo político e partidário. Ou, no mínimo, a aparência e a ilusão de que as detinha.

3. Compreende-se bem a subtileza de Costa e o que ela visa. Mas a verdade é que esta aparente descida à realidade tem de ter em conta outros dados. O primeiro é a situação política interna do PS. O factor estabilidade tem, na perspectiva do PS, uma dimensão externa, que corresponde justamente ao dilema viabilização ou não viabilização do governo da coligação e das suas medidas, e uma dimensão interna, que se traduz na fragilidade da liderança que acaba de arrostar com uma derrota deste calibre. Neste momento, não é possível aferir como vão actuar e organizar-se os adversários internos de António Costa, mas não pode excluir-se um conjunto de debates, vicissitudes e até batalhas que desgastem intensamente a sua liderança. Ora, é manifesto que a dita posição sobranceira de “dono da bola”, que ontem foi ficcionada, está dependente de uma autoridade e legitimidade internas que não podem estar em discussão. A capacidade de impor um discurso externo credível depende intimamente de não ter de, com esse mesmo discurso, responder a uma frente interna. O risco de usar a “negociação” com o governo para se valorizar na frente interna debilita, e em alto grau, a tal mais-valia posicional. A certa altura, as exigências a fazer ao novo governo não passarão de exibição de músculo perante os pares e o dito trabalho de “estabilização” pode complicar-se grandemente. 

4. Mais importante ainda, é a força do “factor estabilidade” em si mesmo considerado. A razão pela qual o PS, na noite eleitoral, passa do radicalismo da campanha para o realismo do dia seguinte é a consciência exacta de que o eleitorado e a opinião pública querem estabilidade. Na verdade, em futuros actos eleitorais, o partido que for responsável ou, pelo menos, “responsabilizado” pela geração de instabilidade política será, muito provavelmente, penalizado. A nova abertura do PS não surge, por isso, pelos lindos olhos da estabilidade ou pela consciência aguda de que afinal é o senhor do jogo. Não. Ela surge por um receio ou medo ostensivo: o receio ou medo de ser identificado pelos eleitores, no futuro, como o gerador de instabilidade. O PS terá com certeza, por ser indispensável à viabilização, um argumento de força. Mas tem outrossim um argumento de fraqueza e debilidade: o temor de ser penalizado por fomentar a instabilidade política. A conversão de Costa não é, pois, como muitos julgam, uma mostra de força. É isso, sim, uma concessão à realidade e ao realismo: que diriam os eleitores em geral de Costa e do PS se este inviabilizasse, sem mais, a nova solução governativa? Grande parte dos meses que aí vêm vai ser marcada por uma esgotante corrida táctica. A corrida para demonstrar, seja do lado do novo governo, seja do lado do PS, qual deles é menos responsável por uma eventual precipitação de uma crise que conduza a novas eleições. O medo de passar por uma oposição “bota-abaixo” ou “desmancha-governos” explica parte importante desta nova atitude do PS e mostra que a posição de força não é tão vincada quanto possa aparentar. E o medo – povo de viticultores que somos, sabemos bem – guarda a vinha.

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