Espanha e a ciência cri-cri

A ambiguidade entre a investigação científica e o combate ideológico só pode dar péssimos resultados.

Podemos voltar a falar de ciências sociais? Podemos. Eu tinha prometido na terça-feira dedicar-me hoje a Espanha, já que os nossos queridos vizinhos parecem praticar, ainda com maior empenho do que nós, esse popular desporto académico a que chamei “agendas políticas travestidas de projectos de investigação”. É que enquanto nestas páginas eu perorava contra a ciência cri-cri (crítica e criativa) do Observatório sobre Crises, em Espanha, continuavam a acumular-se as notícias em torno de um muito problemático triângulo envolvendo o financiamento do Podemos, a Fundação CEPS e o regime venezuelano.

CEPS reparem nas ironias do destino é o acrónimo para Centro de Estudios Políticos y Sociales, uma instituição sedeada em Valencia mas com pólos espalhados por toda a Espanha. Os principais dirigentes do partido de Pablo Iglesias, incluindo o próprio, fizeram até há pouco tempo parte da cúpula da Fundação CEPS, dedicada a apoiar investigações que esbanjam cientificidade logo nos seus títulos, como El Huracán Neoliberal Una reforma laboral contra el trabajo ou Bolivia en Movimento Acción colectiva y poder político. O CEPS tem como fim, segundo podemos ler no seu site, “o debate e a investigação no âmbito político-social, com o objectivo de alcançar uma sociedade mais justa e solidária, através da redistribuição da riqueza, o fomento da democracia participativa e as garantias efectivas de protecção dos direitos humanos”, objectivos que o CES de Coimbra certamente também partilha. É a tal ciência cri-cri crítica e criativa e desejosa de impor “cientificamente” uma determinada visão do mundo. Em vez de se investigar porque é que a maçã caiu na cabeça, investiga-se a melhor forma de atirar a maçã à cabeça para que ela comece a acreditar na nossa weltanschauung.

Problema: começaram a surgir notícias de que o regime venezuelano poderia ter financiado indirectamente o Podemos através da Fundação CEPS. Em Junho do ano passado, o El País noticiou que o CEPS recebera, desde 2002, 3,7 milhões de euros do Governo de Hugo Chávez, e que, em alguns desses anos, 80% das receitas do centro tiveram origem na assessoria prestada a Caracas. O próprio Iglesias desempenhou funções de consultor, e quando recentemente procurou distanciar-se do regime de Nicolás Maduro foi apelidado de “Judas” na Radio Nacional de Venezuela. Desde então, as notícias têm vindo a acumular-se, e a oposição venezuelana entregou há poucos dias abundante documentação junto do Tribunal de Contas espanhol, alegando que o financiamento ilegal (Espanha não permite o financiamento de partidos por regimes estrangeiros) pode ascender aos 14 milhões de euros, via contratos de serviços de assessoria que nunca foram prestados.

Note-se que não quero estar aqui a forçar paralelismos, por muito popular que o professor Boaventura seja na América Latina e muito amor exale pelos regimes bolivarianos. Felizmente, vivemos num país onde os cantos de sereia da esquerda à la Podemos atingem uma fatia muito pequena do eleitorado. Convém, contudo, que os senhores do CES, os seus Observatórios e os seus muitos bloggers não nos obriguem a deglutir a ciência cri-cri, através da qual muitas disciplinas sociais são transformadas em meras hospedeiras de projectos políticos saídos de cartilhas velhas e relhas. É olhar aqui para o lado: a ambiguidade entre a investigação científica e o combate ideológico só pode dar péssimos resultados.

Jornalista; jmtavares@outlook.com

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