Cidadania também é "não copiar no teste" e "ir para a cama a horas"

Workshop sobre cidadania leva crianças de Oeiras a descobrirem conceitos como igualdade. Mas a “liberdade é a palavra mais bonita de todas”, diz Miguel, oito anos.

Foto
Daniel Rocha

O novelo de linha branca foi passando pelas pequenas mãos, que prenderam o fio até uma espécie de teia de aranha gigante ligar a dezena de crianças que, mais ou menos envergonhadas, iam dizendo o nome, a idade e o ano escolar que vão frequentar em Setembro.

Depois, perceberam que se uma puxasse o fio, haveria pelo menos outra ou mais duas que se mexiam. Porque vivem em sociedade e as suas acções interferem com as dos outros – umas vezes por boas razões, algumas por más. E se deixarem cair o fio, as preocupações e a força que têm unidos para proteger o ambiente, os amigos, os animais de estimação (os exemplos que as crianças apontaram) irão enfraquecer.

O jogo serviu para descontrair o grupo de miúdos que no sábado de manhã foi até à delegação da freguesia de Paço d’Arcos, no concelho de Oeiras. Crianças e mães contrariaram o sol apetecível que os chamava para a praia, a escassos 200 metros do edifício, e foram aprender a falar de cidadania no workshop Bússola Cidadã, organizado pelo Movimento Mudança Sustentável (MMS). O projecto pretende “democratizar e desmistificar a linguagem política” para que, ao simplificar os conteúdos políticos e cívicos, as pessoas se sintam mais atraídas a exercer uma cidadania participativa.

O MMS candidatou o projecto Bússola Cidadã aos apoios da Fundação Calouste Gulbenkian, com o objectivo de “criar uma plataforma digital (com site, app e jogo) que adapte os conceitos da cidadania e da política a uma linguagem para crianças”, descreve Pedro Marques, presidente do MMS. A intenção última é levar os órgãos de soberania a fazerem o mesmo. E também compilar informação, já destinada aos adultos, sobre as formas de participação activa, como as reuniões públicas dos executivos e assembleias municipais e os projectos em discussão pública. O projecto seria aplicado nos municípios de Oeiras, Lisboa, Amadora, Sintra e Cascais, em escolas e associações recreativas, por exemplo.

Depois da rede, as crianças meteram mãos à obra para construírem uma bússola, com esferovite, pregos, papel e cola. Para saberem onde fica o Norte magnético, mas também perceberem que a orientação é precisa no caminho que querem seguir durante a vida, de acordo com valores e princípios, regras e objectivos. Não houve grandes dúvidas sobre o que são direitos e deveres – e a Beatriz, de 6 anos, já sabe que ambos são diferentes para adultos e para as crianças.

As crianças não chegaram ao próprio conceito de cidadania – ainda – nem falaram directamente de política. Mas ouviram e falaram sobre igualdade, participação, responsabilidade, respeito, liberdade, solidariedade, cooperação, transparência e integridade. Assim mesmo, por esta ordem, para que as palavras mais difíceis viessem no fim – e até aos adultos faltaram ideias para as descrever de forma acessível a crianças que frequentam o ensino básico.

Igualdade é “todos poderem comer um bolo” – tenham o cabelo comprido ou curto, sejam rapazes ou raparigas -; a participação é um direito e um dever; a responsabilidade é “deitar a horas”; o respeito é “respeitar e seguir o que os adultos mandam”, mas “não é só entre as pessoas, é também para com os animais”; a liberdade é não ser escravo, mas também respeitar os outros; a solidariedade é “ajudar os outros”; a cooperação é “fazer um trabalho de grupo na escola”; a transparência é “não copiar no teste” e a integridade é ser justo, correcto e respeitar os direitos e deveres dos outros.

A lista, feita com os contributos das crianças, foi enchendo um quadro branco. No final, o conceito menos percebido foi o da integridade. E o apontado como preferido pela maioria a liberdade. Como fizeram os irmãos Miguel, de 8 anos, e Diogo, de 5. “É a palavra mais bonita de todas”, diz o mais velho, que minutos antes segredara ao ouvido da mãe que a liberdade tinha vindo “depois da ditadura”.

A maior parte das palavras aprendidas são novas e a mãe, Marta Girão, diz que são ainda “conceitos abstractos”. Alguns deles, os filhos já aplicam sem saberem, porque são miúdos “responsáveis e solidários”. Mas daí a chegar ao conceito de cidadania ainda há um longo caminho a percorrer.

Sozinho no workshop, Rafael, de 12 anos pediu à mãe para vir. Teve uma disciplina de cidadania na escola, em Sassoeiros, mas os conceitos da transparência e da integridade foram descobertos hoje. E com a teia de fio branco percebeu que “sem os outros não conseguimos fazer nada; precisamos das outras pessoas para fazer uma coisa grande.”

Ana Fernandes tem duas filhas mas veio ao atelier da Bússola Cidadã sozinha - as jovens ficaram a cuidar da avó. Uma delas tem 18 anos e diz que votar é uma espécie de bicho-de-sete-cabeças. “Os adolescentes estão hoje muito distantes do que é a política. Há 30 anos o conceito estava muito mais à flor da pele devido ao contexto em que se vivia. Agora andam perdidos, alheados, não têm noção sobre o que se passa. É uma adolescência inculta politicamente”, aponta Ana Fernandes ao PÚBLICO.

Lá para Setembro, o MMS retoma estes wokshops. Os miúdos querem “mais jogos” e a Sofia, de 6 anos, até sugeriu que a mãe “ensinasse a fazer salame de chocolate”. Com alguma paciência, daria para testar quase todos os conceitos que aprenderam desta vez.

Sugerir correcção
Comentar