A outra herança da troika

A uma semana das eleições, a campanha para as europeias arrasta-se com um torpor nunca visto em 40 anos de democracia. A penúria dos partidos, ou a conveniência de ser frugal nesta era de empobrecimento, salvaram as ruas dos cartazes de apelo ao voto. As televisões remetem a cobertura da campanha para o minuto 50 ou mais. Os jornais relatam os esforços dos candidatos em poucas páginas e há colunistas influentes como José António Lima, do Sol, mais preocupado em especular sobre a putativa candidatura de Guterres às presidenciais de 2016. Nas discussões que se têm feito sobre o rasto da troika, tem faltado a avaliação das consequências do entorpecimento cívico que tornou os portugueses alheios da política e avessos à participação pública. A fragilidade das empresas ou a dimensão da dívida colossal são um pesadelo para o futuro, mas a sensação difusa de prostração e derrotismo que a campanha eleitoral revela apenas serve para o agravar.

Se, apesar das naturais divergências, é possível avaliar com um mínimo de objectividade o que se fez na economia ou nos corpos de leis nos últimos três anos, há um vazio anímico que passa ao lado dos discursos principais e que revela uma lamentável falta de nervo da sociedade portuguesa. O encolher de ombros tornou-se a medida de todas as coisas da política. O não querer ver e não querer saber torna quase patético o esforço dos políticos e dos candidatos. Depois de tudo o que aconteceu, com tantos cortes nos salários da função pública e nas pensões, com a redução do nível de protecção social, com o desemprego que deixou poucas famílias incólumes, seria normal que as eleições fossem aproveitadas para um ajuste de contas. Seria normal que a irritação, o desespero ou a desconfiança se materializassem numa mobilização cívica capaz de se focar em alvos de contestação definidos, fossem os partidos do Governo pelo que fizeram ou pela Oposição que os deixou fazer. O que se observa, porém, é exactamente o contrário. Não há ira nem empenho, apenas desesperança e conformismo.

Uma análise mais racional do que está a acontecer neste país pobre e apático tentará justificar este estado de ânimo com as culpas da Europa. Com alguma razão. A Europa é um lugar distante, com regras confusas. As suas instituições são opacas e dominadas por colarinhos brancos insusceptíveis de escrutínio e de escolha eleitoral. Para se perceber as suas medidas exigem-se utensílios técnicos e mentais que escapam ao comum dos cidadãos, seja a regra de ouro do Tratado Orçamental ou os pilares da União Bancária. O que se foi consolidando na sensibilidade dos portugueses como um projecto entre países amigos, no qual a solidariedade se exprimia em palavras e em fundos europeus, acabou com o cinismo, a insensibilidade e alheamento dos grandes países para com o destino de um povo que se sentia vítima de naufrágio. Com o desencanto que pode levar ao desprezo.

Mas se essas razões fossem percebidas e aceites, seria normal que um país vivo começasse a produzir focos de rejeição à Europa e à sua moeda única. Dez dos 14 partidos que estão na corrida eleitoral tentaram colar-se a esse sentimento difuso, explorando a natural propensão das pessoas para acreditarem que o “mal” tem de estar nalgum lado e esse algum lado é a União e o euro. Mas nem aqui os resultados foram felizes – e, neste particular, ainda bem que o não foram. Para se pôr em causa todo o passado do país depois do 25 de Abril não basta a disposição para o comentário taxista-leninista, nem para a sentença cómoda do treinador de bancada. Essa ruptura exigiria de parte significativa dos portugueses uma coragem e uma determinação para correr riscos que hoje não existem.

Dirão entretanto outros que, como sempre, a culpa é dos políticos. É verdade que já não há paciência para assistir a mais uma ressurreição eleitoral de Carmelinda Pereira, mas se Portugal se dispõe a vituperar personalidades da craveira de Francisco Assis ou Paulo Rangel, de Marisa Matias, de Rui Tavares ou de João Ferreira, então é porque a sua rejeição aos políticos atingiu uma dimensão patológica. Desta vez, os candidatos são bons e se não falam da Europa fazem-no por falta de escrúpulos mas também por reverência ao que os eleitores estão supostamente dispostos a ouvir. Deveriam ser mais pedagógicos, deveria Rangel ser mais imaginativo e deixar o legado “despesista” de José Sócrates, deveria Assis mostrar mais paixão pela Europa e deixar as legislativas para o tempo oportuno? Deveria Rangel poupar-se a rituais popularuchos que nada têm a ver com ele, como esse gesto de beber pelo borco espumante de qualidade? Sem dúvida que sim. Mas dizer que a culpa pelo estado catatónico em que o país se encontra é deles é injusto e errado.

Não se pode dar de beber a um cavalo que não tem sede e os portugueses deixaram-se afogar pela política e demitiram-se dos seus deveres de cidadania. A troika vai-se embora e não se tuge nem muge porque para a generalidade dos portugueses isso é indiferente. Ganhe o governo ou o PS, eles são todos iguais. Corte-se nas pensões ou nos salários, vêm outros e fazem o mesmo. A Europa muda de natureza, Portugal torna-se um peão no jogo dos grandes interesses, o que tenho eu a ver com isso? Numa altura em que mais precisávamos de determinação, garra e convicção para os desafios que o país enfrenta, revelamos pelo contrário apatia, desinteresse e ensimesmamento. O velho país onde o preto é cor regressa no seu fado eterno. Esta “malaise” que a troika acentuou é uma das suas piores heranças.

2- Um dos maiores mistérios destes dias em Portugal está em curso nos planaltos que antecipam o vale do Douro, lá para os lados de São João da Pesqueira. Algures por aquelas paragens, Manuel Baltazar, 61 anos, continua a monte, depois de alegadamente ter assassinado duas mulheres. Já lá vão 31 dias de mistério. Se Portugal fosse os Estados Unidos, já andariam à volta do caso uns dez argumentistas e outros tantos realizadores de cinema. Para fazer um filme épico, que narrasse a dureza da vida do fugitivo e a sua esperteza, ou para uma série cómica na qual um homem imaginativo consegue escapar a um dispositivo policial que chegou a mobilizar mais de 150 homens.

A saga-fuga de Manuel Baltazar é uma metáfora de um país de génios que sabem explorar anomalias. Se continuar vivo (uma das dimensões do mistério), ele pode recuperar o estatuto dos bandoleiros do século XIX que, como os Marçais da vizinha Foz Côa ou o Zé do Telhado, iludiam sistematicamente o poder das autoridades e ditavam a sua lei no meio dos montes. Se nada lhe aconteceu (o que alguns moradores confirmam, dizendo que está a receber apoio), ele ameaça transformar-se no emblema de uma polícia, no mínimo, mal preparada para estas operações.

Sugerir correcção
Comentar