Entre o medo e a ameaça

Os procedimentos democráticos funcionaram como era suposto. Houve eleições e a população manifestou-se. Em minoria, mas manifestou-se. Todavia, o discurso de ódio está lá, como sempre esteve, mas agora mais ameaçador do que nunca.

As eleições presidenciais do passado domingo carimbaram na nossa historia um momento de viragem. Não obstante a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa com um resultado inequívoco, os resultados evidenciaram o reforço do extremismo de direita no cenário político português, com o líder de um partido xenófobo, racista e neofascista a alcançar uma votação de 11,9%. Quer a vitória de MRS quer o peso elevado da abstenção correspondem, grosso modo, às expectativas, enquanto o resultado no líder do Chega foi a principal novidade da noite eleitoral (embora igualmente previsível).

Num quadro geral de instabilidade e de inquietação gerado pela intensificação da crise sanitária, com a sucessão de incongruências, decisões políticas erráticas, incerteza quanto ao futuro, etc., os cidadãos responderam à chamada – apesar do confinamento, a abstenção real não foi tão grande como era previsível –, mostrando vontade de contribuir para as soluções de que o país precisa. Mas as implicações do que se passou transcendem muito as boas intenções da maioria dos eleitores. Acresce que o panorama de desorientação favoreceu a descredibilização das instituições e do próprio Governo, beneficiando assim a retórica radical contra “o regime” e, assim, a crispação instalada em amplos setores reverteu em larga medida em benefício de Ventura.

Sabemos bem que a sensação de “cerco” por que estamos a passar se deve a múltiplos fatores, entre os quais as próprias mutações e rapidez de contágio que o vírus tem revelado. Além disso, os hábitos ancestrais do povo português, nos seus relacionamentos e sociabilidades quotidianas, no ambiente familiar, escolar, profissional, etc., passam muito pela proximidade física, pelo abraço, pelo toque, os beijinhos, o falar a dez centímetros de distância do outro. Ou seja, a pulsão dos afetos sobrepõe-se à prevenção face ao risco. Em suma, o descontrolo geral a que se chegou não é da responsabilidade exclusiva do Governo, embora seja ele o bode expiatório mais à mão. E obviamente que o discurso “anti-regime”, “anti-sistema” e “anti-esquerda” cola mais facilmente nestas condições.

Por outro lado, o facto de vivermos em ambiente de pandemia, desde há perto de um ano, marcado por ciclos, oscilações e picos de intensidade variada, mas sobretudo acompanhado por um volume noticioso e de informação que atingiu o ponto de exaustão – e que, para muitas pessoas, teve como consequência não a informação fundamentada, mas o espalhar da dúvida, do medo e da paranoia –, ofereceu com isso algumas das razões para o desnorte a que se chegou em diversos meios sociais. Pode, pois, dizer-se que os resultados destas eleições, face a uma campanha com pouco contacto pessoal e muita “realidade virtual” e manipulação pelo meio, tiveram o desfecho expectável.

Conhecemos a complexidade da vida social. A psicologia social e a sociologia sabem bem como se opera, em particular na sociedade informacional de hoje, a construção subjetiva da realidade sob o efeito coercivo de estruturas objetivas. O poder simbólico do campo mediático é uma dessas estruturas, indutora de múltiplos efeitos perversos. A abundância (ou o excesso) de informação não significa necessariamente maior conhecimento, antes pelo contrário, tende a banalizar e distorcer a perceção da realidade. Face à situação de exaustão informativa, torna-se incomportável a capacidade de perceção dos riscos que corremos, tanto no campo sanitário como na esfera política. Depois, sabemos bem o quanto os média se agitaram, em especial as televisões, na projeção que dedicaram a André Ventura.  

Paralelamente, temos o mundo “virtual-real” dos meios digitais, que se tornou acessível a todos. Com as redes sociais a oferecerem-se como instâncias de “escape” onde é fácil ficcionar uma realidade imaginária que, mesmo sem correspondência com a realidade, permite construir “paraísos artificiais” onde nada se questiona, antes se oferecem como redutos de certezas e dogmas, que servem para apaziguar os medos ou radicalizar a sede de vingança. É neste mundo que, como sabemos, reside o principal fertilizante das teorias da conspiração e do negacionismo. Todo esse campo das plataformas digitais serve hoje de principal fonte de “informação”, que na verdade não está sujeita a qualquer “fact checking” e, pior do que isso, permite que cada sujeito caminhe em busca não de uma informação efetiva e com fundamento científico, mas antes enverede por uma espiral alucinada de imagens e ameaças que encaixem nos seus esquemas mentais.

Ao longo da campanha pudemos testemunhar o modo como Ventura soube capitalizar o descontentamento e o medo em seu benefício. Usou as redes sociais e propagou a mentira e as promessas fáceis, agradando a um eleitorado diverso e zangado, uns com as condições de vida e outros com a democracia ela própria. Já se sabia que a campanha presidencial funcionaria para a extrema-direita organizada no Chega como um trampolim para voos mais altos. Como era de esperar, a euforia do resultado obtido (ainda que sem ficar em segundo lugar) começou logo a subir de tom e a dar continuidade à sua sanha arrogante e rasca, como foi o caso das referências que fez a Ana Gomes e a toda a esquerda. Não tardará muito a que da provocação se passe para a ameaça. Mas perante a candura de Rui Rio e as “análises” de Marques Mendes a acusar a esquerda de ser responsável pelo resultado de Ventura, percebe-se até onde pode ir a irresponsabilidade política deste PSD.

Digamos que os procedimentos democráticos funcionaram como era suposto. Houve eleições e a população manifestou-se. Em minoria, mas manifestou-se. Todavia, o discurso de ódio está lá, como sempre esteve, mas agora mais ameaçador do que nunca. A esse propósito, vale a pena lembrar que existem meios legais para o combater. As leis vigentes que preveem a sua punição são claras: a Lei n.º 94/2017 de 23-08-2017 (Artigo 240.º, n.º 2-d)) do Código Penal afirma que “Quem incitar à violência ou ao ódio contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica; é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”. Vimos bem nesta campanha como reiteradamente aquele candidato ofendeu, injuriou, difamou e ameaçou com tiradas jocosas acerca do caráter ou do aspeto estético de outros candidatos e candidatas.

É claro que o medo assume diversas formas, desde o medo cobarde que se reverte em arrogância perante o mais fraco e em submissão perante os poderosos, ao medo preventivo que nos ajuda a pensar e a definir estratégias de defesa que evitem o triunfo do ódio. Quero acreditar que o nosso medo coletivo se inscreve nesta segunda categoria. Ou seja, um medo que, por um lado, nos deve ajudar a prevenir contra a covid-19 e, por outro, nos impele a travar a ameaça latente que ameaça as nossas conquistas democráticas. Já sabíamos o quanto a democracia é um sistema frágil, mas estamos em risco de vê-la deteriorar-se se nada fizermos contra o vírus neofascista que a quer destruir. Não é pela violência. É pela aplicação da Lei e pela mobilização coletiva que isso se faz. À atenção de todos os partidos democráticos e dos seus dirigentes e das próprias instituições.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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