Casar pela Igreja, de novo

Paulo e Maria José formam um daqueles casais que acabam as frases um do outro. Ao fim de uma dezena de anos a viver juntos e três filhos depois, são o rosto dos divorciados recasados que a Igreja Católica se propõe acolher.

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Quando Paulo Alves pediu Maria José em casamento pela segunda vez, já viviam juntos há mais de uma dezena de anos. Os três filhos adoptados do casal asseguraram a banda sonora, com uma versão homemade de Cinderela de Carlos Paião, enquanto Paulo se ajoelhava de anel em riste, como manda o figurino. Maria José disse que sim e chorou. Aliás, choraram todos. Nada que se compare, porém, com a choradeira que se gerou entre os convidados do casamento deles, no dia 3 de Setembro deste ano, quando reiteraram perante o Deus em que acreditam que haveriam de continuar juntos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

“Foi muito comovente. Todas as pessoas que lá estavam, incluindo os seis ou sete padres que foram convidados, conheciam a nossa história”, recorda Maria José Costa, a Cinderela desta história nada convencional. Afinal, Paulo já tinha sido casado pela Igreja e andara a arrastar o desejo de pedir a declaração de nulidade do primeiro casamento há mais de uma década. A fé que deposita na Igreja Católica agravava a sensação de falhanço. Afastou-se dos escuteiros católicos, deixou de ir à missa, de comungar, de se confessar. E Maria José, que entretanto se lhe juntou, também.

Antes mesmo de, em Dezembro de 2015, o Papa Francisco ter criado uma espécie de via verde para acelerar o desfecho dos pedidos de declaração de nulidade do casamento católico, Paulo lá se expôs diante de um tribunal eclesiástico para sustentar que o seu primeiro casamento não deveria ser considerado aos olhos de Deus e da Igreja.

Na sequência das alterações introduzidas pelo Papa ao processo canónico para declaração de nulidade matrimonial, os pedidos aumentaram em mais de 50%. Os números relativos a 2016, colhidos pelo PÚBLICO no início de Novembro junto de 11 dos 14 tribunais eclesiásticos existentes no país, apontavam para 196 pedidos de declaração de nulidade, contra os 128 do ano anterior. Além de mais barato, o processo foi desburocratizado. E menos estigmatizante, na linha, aliás, da abertura da Igreja aos divorciados recasados ou aos que vivem em união com outra pessoa fora do casamento que o Papa viria a defender na exortação pós-sinodal Amoris Laetitia, publicada em Abril. Mas o pedido de Paulo foi anterior a isto. “Demorei a sentir-me psicologicamente preparado para tirar o papel da gaveta. Era muito duro reviver as mágoas do passado. Depois, a imagem que tinha de um tribunal eclesiástico era a de um juiz com um martelo e eu pensava: ‘Bolas, eu já me julgo tanto a mim próprio e agora vem outra pessoa julgar-me também?!’ Mas foi precisamente o contrário. Ninguém me criticou, apenas procuraram perceber porquê.”

O processo arrastou-se durante dois anos. Quando a sentença chegou, via carta registada, Maria José foi buscá-la aos Correios e, ainda dentro do carro, ligou a Paulo. “Disse-lhe: ‘Tenho o envelope na mão. O que é que queres que faça?’ E ele: ‘Então abre.’ Abri e percebemos. Foi uma grande alegria, mas sentíamos que ainda não podíamos festejar, porque havia a possibilidade de recurso da ex-mulher”, conta Maria José, antes de ser interrompida por Paulo: “Começámos logo a pensar em casar de novo, mas desta vez pela Igreja.”

Quando Paulo se pôs a telefonar aos amigos, as reacções nem sempre foram as esperadas. “Recordo-me de um responder: ‘Então, mas tens outra mulher? Já não estás com a Zezinha?!’ De facto, como estávamos casados pelo civil desde 2007 as pessoas até se esqueciam. E é verdade que era o terceiro casamento meu a que ele ia.”

Não passava de bom dia e boa tarde

Paulo Alves casou pela primeira vez em 2000. “Namorámos dois ou três anos. Passávamos muito tempo juntos mas — hoje tenho a certeza disso — não nos conhecíamos. Um ano depois, separámo-nos e ainda andámos uns meses sem saber o que fazer. Ao fim de dois anos, divorciámo-nos civilmente. Mas foi muito difícil fazer o luto. O divórcio na minha família não é vulgar. Aliás, fui o primeiro a divorciar-me. Também pela minha educação católica, sempre vi o casamento como algo para a vida. Sofri muito, inclusive andei num psicólogo, a bater mal da cabeça.”

Paulo e a ex-mulher faziam parte do Agrupamento 514 do Carregado do Corpo Nacional de Escutas. Maria José também. “No início, não gostava nada dele. Achava-o muito antipático. E eu era extrovertida e alegre e ele pensava que eu era um bocado maluca. Era bom dia e boa tarde. Mas, de certa forma, tinha pena dele. Toda a gente sabia o que se tinha passado e ele parecia-me muito isolado. Comecei a puxá-lo para sair com o meu grupo de amigos. Comecei a perceber que ele lidava muito mal com o divórcio. Não era por aquilo que os outros podiam pensar. Era por aquilo que ele pensava dele próprio. Quem tinha o estigma do divórcio era ele. Lembro-me de que, quando já namorávamos, íamos num centro comercial e ele viu uma pessoa conhecida e largou-me a mão”, recorda Maria José.

Olhar envergonhado e um namoro

Antes disso, desse momento em que Paulo lhe largou a mão, houve aquele outro em que, durante um ensaio do coro, Paulo fixou o olhar em Maria José. “As raparigas estavam de um lado e os rapazes do outro e ele passou o ensaio todo a olhar para mim. Mal me atrevia a levantar os olhos do chão.” Paulo convida-a para um café.

— Foi daquelas coisas que não se conseguem explicar. Parece que a estava a ver pela primeira vez —, desculpa-se Paulo entre risos.

— Estivemos logo até às 3h00 da manhã a conversar —, reforça Maria José.

E, de repente, é como se não estivesse mais ninguém na sala, ou não formassem Paulo e Maria José um daqueles casais que se entreolham e acabam as frases um do outro como se estivessem num mundo só deles. Maria José recorda agora dirigindo-se ao marido:  

— Eu apresentei-te logo os meus podres. Se conseguisses amar-me no meu pior também me ias amar no meu melhor. Contei-te coisas que nunca tinha contado a ninguém.

Maria José tinha então 22 anos e Paulo 29. Assumiram o namoro em 2003. Na família dela, católica mas não tão praticante quanto a dele, a resistência veio sobretudo do irmão mais velho. “Virava-se para a minha mãe e dizia: ‘Olha que ela vai sair com ele. Tu não deixes.’ Eu estava no último ano da faculdade, a preparar-me para ser professora de Ciências e Matemática. E só namorámos um ano. Sentíamos uma afinidade e uma química tão grandes que, mal acabei o curso e comecei a trabalhar, comprámos casa e fomos viver juntos.”

Paulo não quis casar logo. “Era óbvio que não queria arriscar. E a partir do momento em que começámos a viver juntos afastámo-nos da Igreja. O facto de ser divorciado já era um peso, ainda por cima, a viver com alguém. Na altura, sentia que era a Igreja a afastar-me; mas não, eu também me afastei.”

Efectivamente, em 2000, as famílias não eram tão diversas quanto hoje, com filhos ou sem filhos, com papéis ou unidas de facto, heterossexuais, homossexuais, monoparentais, recompostas, numerosas ou em versão mini. Houve naquele ano 63.752 casamentos, dos quais 65% católicos. E apenas 30 divórcios por cada 100 casamentos, contra os 70 divórcios por cada 100 casamentos de 2013. “Estes assuntos eram um bocadinho tabu. E, pelo facto de termos ido viver juntos, tive de sair dos escuteiros, porque era um grupo católico e eu tinha de estar de acordo com os cânones. Isso acabou por nos magoar mais. E, para não nos sentirmos rejeitados, acabámos por nos afastar da Igreja. Eu sabia que, se fosse à missa, já não podia ir comungar, podia-me confessar mas não podia ser absolvida dos meus pecados, não podia ser madrinha de ninguém. Para quem, como nós, estava habituado a fazer uma vida plena como católico, houve ali um corte. E isso indignava-me porque eu sentia que continuava a ser a mesma pessoa de sempre”, recorda Maria José.

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E agora dão passeios

Em 2007, Paulo e Maria José casaram-se pelo civil. “Ele na altura virou-se para mim e disse: ‘Olha, já temos algum dinheiro, vamos casar?” Exceptuada a parte do altar, foi um casamento tradicional: numa quinta, dezenas de convidados, a noiva vestida de branco com uns apontamentos cor-de-rosa, lua-de-mel na República Dominicana. “Foi uma forma de celebrarmos a nossa felicidade com amigos e familiares. E foi um dia muito feliz”, assegura Maria José, ao que o Paulo acrescenta, entre gargalhadas: “Foi o primeiro casamento civil a que fui. Não sabia como era.”

O casamento esteve quase para não acontecer, quando Paulo descobriu que seria muito difícil terem filhos. “Descobrimos pouco tempo antes. Estava mesmo a pensar não casar e a Zezinha que tentasse outra relação, porque o desejo dela era ter filhos. Eu amava-a, mas, por muito que isso me fizesse sofrer, tinha de pensar na felicidade dela.” Maria José riu-se, tentaram a procriação medicamente assistida, a primeira tentativa correu mal, a segunda resultou num aborto e, antes mesmo de esgotarem as possibilidades, decidiram partir para a adopção. “Há casais que gastam 20 anos em tratamentos, mas nós não queríamos perder muitos anos da nossa vida à procura de um filho que poderia nunca vir. E, por outro lado, não queríamos que a adopção fosse o fim de linha”, explica Maria José. O primeiro passo difícil foi preencherem o questionário da adopção. “Aceitaríamos duas crianças, até aos seis anos de idade, de raça indiferente, podendo ter problemas de saúde, desde que estes não nos impedissem de trabalhar”, recorda ela.

— Economicamente, era um luxo a que não nos podíamos dar —, explica Paulo.

Em 2011, no fim da entrevista com a psicóloga da Segurança Social, esta pergunta-lhes:

— E por que não três crianças?

Foram mudos para casa. Até Maria José que parece ser de falar pelos cotovelos foi incapaz de articular palavra. “Nunca me tinha imaginado com três filhos. Nesse dia, na paróquia havia uma vigília de oração cujo tema era: ‘Dizer sim, como Maria.’ Fomos e passámos a noite toda a ouvir ‘Vamos dizer sim, como Maria’, “Vamos aceitar o desafio que Deus nos fez.’ E eu a pensar ‘Oh meu Deus, se às vezes os teus sinais são subtis, hoje só faltam as letras a piscar!’” Andaram um mês a digerir o choque. Faltava perceber se haveria tempo para três crianças, se no carro caberiam todos, se a casa e o dinheiro chegariam para cinco. Um mês depois disseram que sim. Compuseram um álbum com fotos dos dois para que as crianças pudessem familiarizar-se com a ideia de família e, outro mês depois, foram conhecê-los à instituição em que se encontravam. “Sabíamos que eram irmãos e que um mês antes tinham passado a dormir com uma fotografia nossa na cama deles. Mas nós nunca os tínhamos visto, sequer em fotografia. Quando entrámos numa sala com a psicóloga e ela lhes pergunta se sabiam quem éramos, eles responderam em coro ‘Siiimmm, o pai e a mãeee!’ Até fiquei sem ar.”

Quando rumaram a casa, no Carregado, a primeira coisa que as crianças quiseram ver foi o frigorífico. “Há uma semana que estávamos fora de e não tínhamos praticamente nada, mas a reacção deles foi dizer: ‘Tanta comida.’”

— Eles têm uma mochila muito pesada nas costas — contextualiza Paulo, referindo-se àquilo que viveram antes de serem institucionalizados.

Nada que tenha transparecido quando, no casamento dos novos pais, assinaram um texto que fizeram questão de ler em conjunto. “A melhor coisa do mundo foi termo-nos encontrado, quando nos conhecemos, foi um mundo diferente cheio de alegria, amor e felicidade. Queremos dizer-vos que somos muito felizes por sermos vossos filhos e fazermos a família que somos.” Nesse dia, Paulo e Maria José voltaram a comungar.

“E ele pegou na mão dela: ‘Sabes Cinderela, eu gosto de ti’.” 

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