Ministério Público também está contra acesso de pais a listas de abusadores de menores

Conselho Superior, liderado pela procuradora-geral da República, alerta para o risco de agressões "tresloucadas" e cita especialistas nacionais e internacionais para chumbar proposta da ministra da Justiça.

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Um só caso fez disparar os dados de sinalizações por tráfico de menores em Portugal no último ano Helena Colaço Salazar

Avolumam-se as dúvidas de constitucionalidade sobre o projecto de proposta de lei do Ministério da Justiça destinado a permitir que os pais possam aceder ao registo de pessoas condenadas por crimes de abusos sexuais de menores. Depois da Associação Sindical de Juízes Portugueses, do Sindicato de Magistrados do Ministério Público e da Ordem dos Advogados, agora foi a vez de o Conselho Superior do Ministério Público, liderado por Joana Marques Vidal, levantar a mesma questão.

Num parecer que produziu sobre a matéria, este órgão considera o diploma “desproporcional, inexequível e passível de invalidade constitucional” em vários aspectos. E entende ser “assaz problemático” consentir o “acesso indiscriminado” a este tipo de informação por parte dos pais de menores até aos 16 anos, “ao mesmo tempo que, por exemplo, não se inclui expressamente nas entidades com acesso directo às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens”.

A intenção da ministra da Justiça “desconsidera princípios basilares do ordenamento jurídico”, como a reinserção social do criminoso, podendo gerar “perigos para a segurança, ordem e tranquilidade públicas”, ao transferir para a população poderes ligados à prevenção do crime desde sempre reservados às autoridades – “com aparente e implícita legitimação/potenciação da acção directa”. O parecer fala mesmo no risco de “tresloucadas agressões”: “Já há registos - pelo menos um - de casos de tal natureza. Um pai foi violentamente agredido pela população porque foi erroneamente tomado como estando a abusar sexualmente da sua própria filha quando brincava com ela, a aguardar a abertura do infantário onde a deveria deixar. Irrompeu a fúria popular descontrolada”. O registo de pedófilos deve ser somente “um instrumento de facilitação do trabalho das polícias e dos técnicos de reinserção, e apenas como tal deve ser instituído”.

Para o Conselho Superior do Ministério Público, o projecto parece não levar em linha de conta o facto de significativa parte dos crimes de abuso sexual de menores serem cometidos precisamente no ambiente familiar. Em alternativa a esta medida, o parecer propõe o aumento do policiamento de proximidade nos locais de residência dos pedófilos. “Aí, sim, estará melhor garantida a dissuasão”, pode ler-se.

Os magistrados citam um investigador inglês que explicou recentemente na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto como o segredo que a lei impõe a todos quantos acedem à lista de pedófilos não funciona: “A imprensa tablóide conseguiu chegar às listas e publicou nomes e moradas de agressores. Alguns foram agredidos por vizinhos. Houve quem se tivesse suicidado”. Referem igualmente a opinião de um especialista da Universidade do Minho, Rui Abrunhosa Gonçalves, segundo o qual o projecto do Ministério da Justiça reduz os agressores sexuais a párias. “O visado, apesar de presumivelmente ressocializado, com é pressuposto dos regimes penais modernos, qualquer que seja o nível de gravidade do crime, rapidamente ficará sem interlocutores de bairro, sem senhorio, sem merceeiro e, depois, sem emprego. E não terá mesmo família que o queira”, antecipa o órgão presidido pela procuradora-geral da República.

A proibição do exercício de profissões ou actividades – públicas ou privadas, ainda que não remuneradas – que envolvam o contacto com menores por um período que pode ir até aos 25 anos também suscita dúvidas de constitucionalidade, por uma questão de proporcionalidade da punição. Além disso, refere ainda o parecer, o contacto com menores é uma inevitabilidade em quase todas as profissões, desde o carteiro, ao porteiro do prédio, ao empregado de mesa de café e mesmo ao vendedor de jornais. 

Também a Ordem dos Advogados já havia dito que o projecto levantava “inúmeras questões de compatibilidade com a Constituição”, tendo sugerido que o acesso ao registo dos condenados por crimes sexuais contra menores seja restringido às autoridades judiciárias e policiais. Para os advogados, a possibilidade de os condenados figurarem na lista durante 20 anos “contende com a proibição de penas de duração perpétua ou indefinida” estabelecida na lei fundamental. Também o ex-presidente da República Jorge Sampaio já criticou a proposta de diploma, que classificou como “um regresso ao pelourinho e à justiça de apedrejamento”. Ao que a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, respondeu que “então também existirá justiça de pelourinho em vários países da Europa ocidental que têm este sistema”.

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