O futebol já não é o termómetro do Brasil

Ruy Castro casou a literatura com o futebol. Escreveu sobre Garrincha - porque era alcoólico (como ele) e um vencedor. Mas a sua biografia "perfeita" continua a ser a de Carmen Miranda. E é por isso que não fará mais nenhuma.

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O escritor Ruy Castro é um homem apaixonado. Pelo Rio de Janeiro, pelo Carnaval, pela música, pelos livros, por gatos e pelo futebol. E, acima de tudo, apaixonado pelo Flamengo, o seu clube de sempre e para sempre. Escritor e jornalista, este brasileiro de 66 anos recebeu a Revista 2 em Janeiro, na sua casa no Leblon, bairro chique do Rio, com vista para a praia.

Os interesses de Ruy Castro são tão vastos que dariam para dez entrevistas, cada uma sobre as suas várias paixões. É um conversador nato, homem de gargalhada sonora e de muito sentido de humor — quando lhe pedimos para dizer o que é o Brasil, a resposta foi “o Brasil só tem tamanho e pouca vergonha”.

Em ano de Mundial, a conversa centrou-se, porém, no futebol, esse jogo que Ruy Castro segue desde miúdo, primeiro como adepto e depois como um escritor que teve um papel crucial na transformação da literatura sobre futebol no Brasil. A biografia de Garrincha (Estrela Solitária, 1995), um dos mais geniais jogadores de sempre, mas caído em desgraça por causa do alcoolismo, permitiu que os livros sobre futebol chegassem finalmente ao grande público. Nesta entrevista, Castro confessa que queria escrever um livro sobre alcoolismo, por ser alcoólico. “Comecei a beber pelo mesmo motivo que todo mundo: porque beber é bom. E parei, 20 anos depois, porque, tomando dois litros de destilado por dia, descobri que preferia viver”, diz o escritor, explicando ainda que, ao abordar o alcoolismo, quis retratar um vencedor e não um perdedor.

Nascido em Minas Gerais mas desde criança no Rio de Janeiro (“sou um carioca que nasceu longe de casa”), Ruy Castro iniciou-se cedo no jornalismo, com passagens pelo Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Veja ou Isto É. Actualmente, é colunista da Folha de São Paulo, dedicando a maior parte do tempo à literatura. Acaba de lançar um livro de crónicas sobre futebol (Os Garotos do Brasil — Um Passeio pela Alma dos Craques), 24 anos depois do seu primeiro grande sucesso: Chega de Saudade (1990), sobre a história da bossa nova.

Ruy Castro tem-se destacado como biógrafo, género em que conseguiu juntar a sua curiosidade insaciável e uma escrita cativante, misto de reportagem e romance. Além da biografia de Garrincha, escreveu sobre a vida do cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico, 1992) e da cantora Carmen Miranda (Carmen, 2005), a biografia “perfeita”, que o levou a dizer à Revista 2, já com o gravador desligado, que não voltará a escrever biografias. “Passei cinco anos a fazer a Carmen Miranda. Não vou fazer melhor e, por isso, não escrevo mais biografias.”

A conversa, na varanda com vista para o mar, durou mais de duas horas. Ruy Castro falou dos protestos contra Dilma, que considera artificiais, de como o futebol já não serve como termómetro de um país e lembrou a tradição de o Brasil só ter as coisas prontas em cima da hora. E ainda lamentou ter poucos livros publicados em Portugal, um país onde viveu entre Janeiro de 1973 e Outubro de 1975 (como editor da Selecções Reader’s Digest) e onde vive a filha, que nasceu precisamente nesse período em que os pais estiveram em Lisboa. No final da conversa, ainda teve tempo, e paciência, para nos mostrar a sua imensa biblioteca, com milhares de exemplares, especialmente sobre o Rio de Janeiro, uma colecção que iniciou quando descobriu em França um pequeno livro de memórias do antigo embaixador americano no Rio, publicado em 1936.

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Conhece bem o conceito do “complexo de vira-latas” de que falava Nelson Rodrigues. O Brasil já ultrapassou esse complexo, no futebol e no geral?

A expressão “complexo de vira-latas” foi criada pelo Nelson Rodrigues numa crónica da revista Manchete Esportiva, quando o Brasil foi campeão do mundo pela primeira vez [1958]. O Nelson dizia que, a partir daquele momento, o Brasil (não o futebol brasileiro) não precisava mais exercer o seu complexo de vira-latas diante das chamadas nações desenvolvidas, porque depois de ser campeão do mundo cada favelado de pé no chão, cada mata-mosquito, cada catador de papel andava na rua de nariz empinado, como se tivesse um manto de arminho nas costas, como se fosse um rei. O brasileiro tinha adquirido subitamente uma consciência das suas potencialidades.

Mas o que era esse “complexo de vira-latas”?

O brasileiro sempre achou que o seu futebol era o maior do mundo, pelo menos desde os anos 1940. O futebol europeu era duro, com jogadores inábeis, que usavam calções compridos e não sabiam dominar uma bola direito. Eram grossos, como se dizia. Então o brasileiro se achava muito superior futebolisticamente a esses jogadores europeus, mas quando ia enfrentá-los tinha medo. Baixava o “complexo de vira-latas” do brasileiro perante o europeu. Aí dizia o Nelson Rodrigues: “Na Europa, uma xícara [chávena] de asa quebrada tem 2000 anos. Você não pode se comparar a uma civilização dessas.” Embora houvesse essa superconfiança no futebol brasileiro, na hora de jogar, o brasileiro tremia, se considerava inferior e perdia jogos que não devia perder. Em 1958, a selecção brasileira partiu para a Copa do Mundo na Suécia tão desacreditada como sempre tinha partido. E lá as coisas se mostraram diferentes. O Garrincha, Didi, Pelé e outros jogadores se impuseram, o Brasil foi campeão e, na opinião do Nelson Rodrigues, o brasileiro adquiriu uma tremenda confiança nas suas potencialidades. O Nelson não voltou a usar essa expressão. Essa expressão ficou esquecida e até 1992 não foi lembrada. Modéstia à parte, ela foi recuperada por mim no livro Anjo Pornográfico. Citei esse texto. No ano seguinte, quando lançámos À Sombra das Chuteiras Imortais [livro de crónicas de Nelson Rodrigues], demos a crónica completa. E aí, com a redescoberta geral do Nelson Rodrigues, essa expressão foi incorporada ao pensamento brasileiro como algo que ajudava a explicar muita coisa do nosso passado.

Ganhar cinco Copas ajudou a ultrapassar esse complexo?

Isso é para você ver como não pode usar o futebol como termómetro do julgamento de um temperamento nacional. Em 1958, o Brasil foi campeão do mundo e deixou de ter “complexo de vira-latas”. Em 1962, quase com a mesma equipa, não tem complexo. E depois fracassou em 1966 e ganhou em 1970. Depois perdeu 1974, 1978, 1982, 1986, 1990. Perdeu cinco Copas seguidas e com isso volta o “complexo de vira-latas”. E ficou pior ainda porque depois começou esse êxodo de jogadores para a Europa: um jogador acaba de se destacar aqui e vai embora, jogar lá fora. Mas se toda a gente se comportar como eu com a selecção, estamos mal. A minha falta de identificação com a selecção brasileira é gigantesca.

Porquê?

Porque não conheço os jogadores. Demoro a acostumar-me com eles. Nenhum deles joga aqui, no Brasil. Há jogadores que vejo pela primeira vez quando jogam na selecção brasileira. Não sei se jogaram no Flamengo, no Cruzeiro ou no Internacional. De repente, o Scolari me convoca um jogador de que nunca ouvi falar na vida. Que intimidade eu tenho com esse jogador, e isso acontece em massa, apesar de eu ver futebol todas as semanas? Por isso, a minha relação com a selecção brasileira é muito distante. Só me interesso pela selecção se joga bem. O patriotismo pelo patriotismo não me pega. O meu patriotismo se chama Flamengo.

A derrota no final do Mundial de 1950, que ficou conhecida como “Maracanaço”, ainda está muito presente na memória colectiva do Brasil?

Não. Isso acabou com a Copa de 1958. Eu tinha dez anos. Quando começou a final, a Suécia marcou aos quatro minutos. Já havia gente a dizer que era igual a 1950. Mas depois o Brasil ganhou 5-2.

Mas não se mantém o trauma de perder em casa quando parecia tudo ganho?

Vamos ver como é agora. Já ganhámos em casa o Mundialito em 1972 e a Copa das Confederações em 2013.

Mas isso não é comparável com o Mundial...

A impressão que se tem é que o futebol hoje não é tão importante. O seu time hoje é campeão brasileiro ou carioca. E você não tem nem tempo de saborear a conquista, porque daí a uma semana começa outra competição.

Fora do futebol, o Brasil cresceu, foi visto como um país a subir de estatuto, mas agora vive momentos mais complicados, com a economia a desacelerar e muitos protestos na rua...

Em primeiro lugar, o futebol deixou de ser uma medida. Se existe o “complexo de vira-latas”, não se refere mais ao futebol. Aparentemente, as pessoas amadureceram e não julgam mais o carácter e a personalidade nacional em função do futebol. O mundo passou de ano, cresceu, amadureceu. Agora julga-se pelas condições objectivas dos países, pelo nível de vida, de compra, atendimento hospitalar, escolas, transportes. E houve anos de grande euforia, desde 1995. Houve grande impulso na economia, acabou a inflação, houve estabilidade na moeda, o desemprego é mínimo. Houve essas políticas de insuflar dinheiro na economia, como o Bolsa Família, e as pessoas ficaram muito contentes, porque mais gente pode ter carro, televisão, computador. Não tem escola e hospital, mas pode ter tudo isso. Mas para mim esses protestos são muito artificiais.

Acha que têm motivações políticas, por se estarem a aproximar as eleições presidenciais, agendadas para Outubro?

No Rio, não há a menor dúvida. O Sérgio Cabral é um governador com todos os defeitos dos políticos de todos os tempos, mas ele fez duas coisas espectaculares pelo Rio: uma foi a pacificação das favelas, que transformou a vida da cidade. A segunda é que, também por causa disso, atraiu uma quantidade gigantesca de investimentos para a cidade. É impressionante a quantidade de projectos em andamento, a recuperação de áreas inteiras do Rio, a abertura de milhares de empresas e, por isso, foi reeleito com 75% de aprovação. Isso não pode continuar. Como é que os adversários políticos, o tráfico de droga e as milícias vão permitir isso?

Os protestos vão repetir-se durante o Mundial?

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Sergio Moraes/REuters

No caso do Sérgio Cabral, fez um mal tremendo à reputação dele. Ele ia eleger tranquilamente o sucessor dele. Não se sabe se isso vai acontecer. Mesmo que um dos adversários seja eleito, espero que, pelo menos, dê continuidade a certas políticas que ele implantou e que são muito boas. No Brasil, quando há alternância de partido político, não continuam o que o anterior estava fazendo. Até destroem. Isso não é de hoje. Acontece desde sempre. Quando acabou a monarquia e veio a república, tudo o que era da monarquia foi abandonado ou destruído. No caso da Copa, vemos as ameaças de que não vai ter Copa. Mas, se você vir as estatísticas de quem faz a campanha Não Vai Ter Copa, você descobre que são cerca de 100 pessoas no Rio, 100 em São Paulo, 50 em Porto Alegre, 45 em Belo Horizonte. É uma minoria de activistas, que se julga muito forte e importante. Todos os ingressos para a Copa do Mundo estão esgotados. Tem milhares de brasileiros a fim de assistir à Copa do Mundo, que vai movimentar a economia na base de bilhões de reais. Você vai ter camelôs vendendo produtos falsificados da FIFA, fabricados em Nova Iguaçu ou na China. Vai ter ambulantes vendendo cerveja no calçadão da praia, ao milhares. Você acha que essa gente vai permitir que não haja Copa do Mundo? O comércio das vans, que foram postas na ilegalidade pelo Sérgio Cabral mas continuam por aí, vai transportar milhares de pessoas na Copa. É uma máfia, são caras violentíssimos. Acha que vão permitir que não haja Copa? E, por fim, as torcidas organizadas, como as do Vasco, Corinthians, Cruzeiro. Esses caras querem a Copa. Então esses activistas Black Blocs, que no país devem ser uns 300 ou 400, vão apanhar, quando saírem à rua a dizer que não vai ter Copa.

Como vê esses investimentos gigantescos em estádios, aeroportos?

Começaram a ser feitos com muito atraso. Talvez o Brasil não seja bom para fazer aeroporto e porto. Já foi bom a fazer estádios, porque a quantidade de estádios fabulosos era enorme. Mas pelo vistos não serviam para a FIFA. Então temos de fazer outros. A FIFA há muitos anos que não é uma organização de futebol, é um conglomerado industrial. Ela te obriga a construir um estádio porque vai vender um espaço gigantesco. Juntar a FIFA com a tendência de corrupção dos empresários e governantes brasileiros dá um quadro espectacular. É evidente que as obras foram mal planejadas, houve muito desvio de dinheiro, como sempre há. O Brasil tem uma tradição de engenharia, para não dizer de arquitectura, espectacular. Você vê grandes obras, até mesmo no Rio. O Maracanã foi uma obra fabulosa, feita em dois anos, e nunca deu problemas. Então o Brasil tem essa tradição extraordinária de grandes obras de engenharia e ultimamente está a ser desmoralizado ou pela irresponsabilidade dos governantes ou pela tendência de corrupção. É uma pena.

O Brasil pode ganhar essa Copa dentro e fora do campo?

É obrigação de quase todos os países anfitriões ganhar a Copa e muitas vezes chegam perto. A Suécia, que nunca foi uma potência futebolística, foi vice-campeã em 1958. O Chile ficou em terceiro em 1962. A Inglaterra foi campeã em 1966. Se o Brasil jogar bem as duas primeiras partidas e ganhar, vai arrebanhar uma torcida monumental. E se torna muito difícil jogar contra 200 milhões de pessoas.

E fora do campo?

Isso aí ainda é para se ver. Por exemplo, quando teve aqui a conferência das Nações Unidas, Rio 92, que reuniu vários chefes de Estado, faltando um mês para a abertura dos trabalhos, estava tudo por fazer. O centro dos acontecimentos era no Rio Centro, na Barra da Tijuca, que tinha acabado de ser inaugurado. Não tinha nada pronto. Então o chefe de escritório da ONU aqui no Rio, um argentino, dizia para a Heloísa [Seixas], a minha mulher, que era chefe de imprensa [actualmente escritora], que “o Brasil é uma bagunça, isso não é possível”. E a Heloísa, para o tranquilizar, dizia: “Aurélio, tenha calma. Você já foi a algum desfile de escola de samba? Faltando 15 minutos para a escola entrar em cena, é uma bagunça, ninguém se entende, está tudo desorganizado. Aí, de repente, chega a hora, alguém apita e a escola sai linda para a rua.” Ele ficava furioso por comparar a ONU com a escola de samba, mas no Brasil é a mesma coisa. O secretário-geral da ONU declarou depois que foi o evento mais bem organizado da história da ONU.

Pode acontecer o mesmo com o Mundial?

Há uma tendência para que isso aconteça. No meio da desorganização, de repente as coisas se arranjam espontaneamente. Ou então não, mas o que tem em volta — o céu, a luz, o calor, o sol, as mulheres, a comida — cria uma atmosfera muito positiva e as pessoas esquecem os defeitos.

Com as biografias de Garrincha e de Nelson Rodrigues e as crónicas de Nelson, ajudou a marcar uma viragem na relação entre o futebol e a literatura...

Eram duas coisas que não andavam juntas no Brasil. Evidentemente havia alguns livros sobre futebol, pequena literatura, mas livros de 2000 exemplares. O mesmo acontecia com livros sobre música popular. Não havia tradição de livros sobre esses assuntos com grandes tiragens. A impressão que se tinha era que ou eram livros feitos visando um público mais académico ou então não eram tão bem feitos, a ponto de interessar a uma grande massa de leitores. Quando sugeri à Companhia das Letras a biografia do Garrincha — e já o Anjo Pornográfico era um enorme sucesso, foi livro de 80/90 mil exemplares — o Luís Soares, editor, da Companhia das Letras, disse: “Acho óptima ideia, mas você sabe que já perdeu metade do mercado, porque mulher não gosta de futebol e não vai comprar.” Eu disse: “Estou sabendo.” “E a outra metade você também vai perder, porque quem gosta de livro não gosta de futebol e vice-versa.” E eu falei: “Estou sabendo.” Ele disse que eu estava a fazer livro para um mercado inexistente. E aí eu disse que não era um livro sobre futebol. Era um livro sobre um ser humano, que por acaso jogava futebol. O que me interessou no Garrincha foi toda a dimensão humana, trágica e poética dele. O futebol ocupará no máximo 10% do livro, que na verdade é o que ocupou na vida dele. E claro que não fiz descrição de lances, até porque à maioria dos jogos nem assisti. O livro foi publicado e foi proibida a circulação pelos advogados das filhas do Garrincha [as filhas exigiram o pagamento de direitos e protestaram, alegando que a biografia dava má imagem do pai]. Mas quando foi proibido já tinha vendido 46 mil exemplares em dois meses. Passou um ano proibido e não voltou com a força com que estava antes, mas continuou vendendo bem e é livro com mais de 90 mil exemplares vendidos. Esse livro marcou uma ruptura na indústria editorial brasileira referente a livros sobre futebol.

E essa ruptura teve continuidade?

Não sei se houve outros que venderam tanto. Eu também não dou essa importância toda às vendas. Por acaso venderam, mas podiam não ter vendido e serem respeitados como livros importantes, que é o que mais me importa. Na verdade, a coisa mais importante no livro do Garrincha não foi valorizada, por causa dessa jogada oportunista dos advogados das filhas do Garrincha, que transferiu o interesse do livro para esse assunto judiciário. O livro atraiu uma imprensa monumental, tenho montanhas de pastas com recortes sobre o Estrela Solitária e a principal coisa não foi discutida: o alcoolismo. Não o alcoolismo do Garrincha, nem do jogador de futebol, mas o alcoolismo do povo brasileiro, que é um problema que atinge 15 a 20% das pessoas. É um problema nacional muito sério, que não era bem entendido na época do Garrincha e que continua não sendo bem entendido. Eu queria provocar uma grande discussão sobre alcoolismo, usando o Garrincha como fio condutor. Infelizmente, foi o que menos discutiram do livro, porque ficaram falando da proibição.

Escolheu o Garrincha por ter alguma admiração por ele?

Não. O Garrincha foi escolhido por causa do alcoolismo. A minha ideia era fazer um livro sobre alcoolismo, até pelo facto de eu ser alcoólatra. Não bebo há 26 anos. Quando tive a ideia de fazer o livro do Garrincha, não bebia há cinco anos. A ideia era fazer um livro sobre alcoolismo mas, como não sou ensaísta, nem historiador, jamais seria uma coisa teórica. Tinha de ser contar uma história. E essa história precisava de uma personagem. E imediatamente o Garrincha me veio à cabeça e vi que era perfeito, por vários motivos. Não queria contar a história de um perdedor, mas de um vencedor, que foi destruído pelo álcool. Ninguém é mais vencedor no Brasil do que o Garrincha entre os anos de 1958 e 1962. Ninguém foi mais amado do que o Garrincha. Vi-o jogar com dez anos, fez o Botafogo ganhar ao Flamengo e não tive raiva dele. Eu estava atrás do gol [baliza] do Flamengo, vendo o Garrincha vir em cima do goleiro, fazendo o diabo da defesa do Flamengo. Por causa dele o Flamengo perdeu e nunca tive raiva do Garrincha. Nunca conheci ninguém que não gostasse do Garrincha em toda aquela fase. Não foi por falta de amor que ele bebeu. Ele teve o amor unânime de 60 ou 70 milhões de brasileiros e o amor de uma grande mulher, que foi a Elza Soares. Bebeu porque bebeu. Outra coisa é que no período em que o Garrincha jogou, entre 1954 e 1962, eu tinha de seis a 14 anos, que é uma época em que as crianças do Brasil se interessam muito por futebol. Pensava em futebol o tempo inteiro, ouvia no rádio, ia no Maracanã com meu pai, comprava jornal e revista, via no cinema. Sabia tudo sobre futebol carioca. Tudo o que era possível uma criança saber. Aí pensei: “Se eu mergulhar nesse livro, vou poder mergulhar no avesso dessa história. Vou poder descobrir o que aconteceu além do estádio, o que aconteceu antes, durante e depois da partida, no vestiário, na concentração, na casa, na cabeça dos jogadores. Vou poder descobrir tudo o que uma criança não podia saber.” Foi como uma viagem ao lado do avesso da minha infância. Teve esse aspecto pessoal também na escolha do Garrincha, também porque nesse tipo de livro tem de haver carácter pessoal, porque é muito trabalho. É muito difícil de fazer e você tem de ter um motivo de amor para se expor a fazer isso.

Por que é que o Ruy começou a beber?

Comecei a beber pelo mesmo motivo que todo mundo: porque beber é bom. E parei, 20 anos depois, porque, tomando dois litros de destilado por dia, descobri que preferia viver.

Diria que o Garrincha é uma das grandes personagens do futebol brasileiro, pelo valor futebolístico e tudo o resto?

Claro. Na verdade, ele era uma figura única. Se estava com a bola nos pés, ele não estava interessado particularmente em passar pelo adversário e cruzar para a área, ele não estava particularmente interessado em que o clube dele ganhasse a partida ou fosse campeão.

Queria divertir-se?

Exactamente. A diversão dele era estar com a bola nos pés.

Há uma frase atribuída a Garrincha, no final do Mundial de 1958: “Já acabou. É só isso?” Uma frase de alguém que se quer divertir...

É possível que ele tenha dito isso, mas criou-se uma imagem de que ele era ignorante. Ele não era ignorante. Era muito inteligente, mas inculto, como a maioria dos jogadores ainda é. Os interesses dele não iam muito além de futebol, bebida e mulher. Gostava de música popular. Era fã de Frank Sinatra, João Gilberto, sabia dançar bem. Nunca leu um livro na vida, evidentemente. Nem precisa. Ou você acha que o Ronaldinho Gaúcho já abriu um livro na vida? Mas ele não era nada o primitivo que diziam. Era um génio na especialidade dele. Talvez não fosse tão completo quanto o Pelé, mas nem teve oportunidade de mostrar isso. Nas poucas vezes que ele precisou de mostrar um repertório mais amplo de jogadas, ele mostrou. Foi na Copa de 1962. Fez golos que não fazia, foi jogar no centro do ataque, no lado esquerdo, fez golos de cabeça e de pé esquerdo, o que ele não fazia normalmente.

Há pouco disse que Garrincha foi amado. Como se faz o contraponto com Pelé, que é a grande figura do futebol brasileiro, mas muita gente diz que não foi tão amado como o Garrincha?

O Tom Jobim dizia isso, que o brasileiro não gosta do vencedor, gosta do perdedor. Ele estava dizendo isso em função do que aconteceu depois, quando o Garrincha se tornou perdedor e por isso seria ainda mais amado do que o Pelé. O Pelé nunca perdeu, sempre ganhou. Os últimos dez anos da vida do Garrincha foram muito tristes. Ele era apanhado embriagado, desmaiado na rua, levado para hospitais em pronto-socorro. Tudo isso saía nos jornais e o alcoolismo é muito julgado socialmente. Se você passa num botequim às oito da manhã e vê um cara bebendo, a tendência das pessoas é dizer: “Vagabundo, isso é hora de beber?” As pessoas não se dão conta de que se o cara está ali é porque ele tem que fazer, porque se não beber vai passar mal. Tem de beber para parar de tremer, para se estabilizar. Garrincha esteve dez anos a ser julgado socialmente, massacrado, criticado, ser chamado de vagabundo, de sem-vergonha. O Pelé sempre jogou grande futebol, as pessoas sempre admiraram Pelé como jogador. De vez em quando, fazia uma declaração que politicamente podia ser errada, as pessoas gozavam, mas se acostumaram ao Pelé. Faz parte da vida do Brasil normalmente.

Como compara o futebol daquela época com o de hoje em dia?

Por algum motivo, as pessoas têm uma estranha tendência a achar que os grandes jogadores daquela época hoje não jogariam tão bem, porque agora o futebol é mais moderno, rápido, há menos espaço. Não consigo entender isso. Se o Pelé e o Garrincha jogassem hoje, seriam maiores do que foram. Eles jogaram numa época em que não havia cartões amarelos, nem vermelhos. O Garrincha levava uma média de 20 rasteiras por partida, ficava com a camisa rasgada e os adversários não eram expulsos. Até conto isso no meu livro. Um camarada no Botafogo até criou uma camisa que rasgasse com facilidade, para que o adversário ficasse com o pano na mão e o Garrincha fosse embora. Hoje, o Pelé e o Garrincha seriam mil vezes maiores do que foram, porque qualquer violência contra eles seria considerada falta. Depois dizem, “eles não teriam preparo físico”. Como sabem? Se jogassem hoje, teriam as mesmas condições de preparo físico dos jogadores de hoje. E, com a habilidade que tinham, seriam perfeitamente capazes de jogar. Outro argumento é dizerem que hoje tem menos espaço no campo. O jogo é mais rápido, mas os jogadores continuam a ter tempo de levantar a cabeça, ver o que vão fazer. O que está acontecendo de alguns anos para cá é que o estilo de jogo do futebol europeu, que é a troca constante de passes, está contaminando o futebol brasileiro. O jogador brasileiro agora, em vez de receber a bola, olhar em volta, dar três ou quatro passes com a bola, driblar um adversário, dá para um idiota ao lado e volta a receber. Fica naquela troca de passes inútil, na verdade, porque a bola não sai muito de lugar. Espero que a ida do Neymar para o Barcelona mude um pouco a forma de jogar do Barcelona, porque se o Neymar jogar igual ao Barcelona ele não será o Neymar [quando a entrevista foi realizada, em Janeiro, Neymar estava há pouco tempo no Barcelona]. Será se pegar na bola e fizer as coisas pela cabeça dele e não ficar preso naquela troca de passes. Não sou grande fã do Barcelona, nem do futebol espanhol.

E como vê o estado do futebol do brasileiro, com o êxodo dos principais jogadores, as baixas assistências?

Não tem muito público, mas sigo com muita atenção. A minha mulher é do Fluminense e assistimos aos jogos todas as quartas-feiras, sábados e domingos. De vez em quando, até assistimos a jogos de outros clubes. Para quê ir ao estádio? Dá muito trabalho. Todos os jogos passam na televisão. E não tenho mais essa disposição para estar no estádio. E como eu, muitos. Além disso, ir ao estádio é mais uma coisa de jovem e hoje os jovens também têm mais o que fazer nos tempos de lazer. A praia hoje é muito melhor do que no passado. Antigamente para tomar uma água era preciso sair da praia, agora vende-se tudo lá.

Há pouco disse que quem gosta de livros não gosta de futebol...

Provou-se que isso não era verdade e os próprios livros do Nelson Rodrigues foram um grande sucesso editorial. E a partir dali centenas de outros livros apareceram, sobre clubes e jogadores do passado do presente. Não me lembro se algum deles atingiu lugares na listas dos mais vendidos, mas a partir dali acabou a má vontade da indústria editorial com o futebol. Todas as editoras passaram a produzir livros sobre futebol.

E também se esbateu aquela ideia de que os intelectuais não gostavam de futebol...

No passado, quem escrevia sobre futebol eram os intelectuais. Eram o Paulo Mendes Campos, Armando Nogueira, Augusto Frederico Schmidt, poetas, cronistas, escritores, como o José Lins do Rego, Nelson Rodrigues. Havia era uma ideia de que a classe média, snob, achava que o futebol não tinha que ver com literatura. Era um preconceito. E a culpa talvez também fosse dos escritores, que não faziam livros interessantes. Quando os livros ficaram interessantes, tiveram aceitação. Hoje se tornou um género perfeitamente presente na indústria editorial.

Há muitos livros conceituados sobre futebol, mas quase todos crónicas. Os romances não são habituais. Há dificuldade em romancear o futebol?

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"A diversão de Garrincha era estar com a bola nos pés Corbis

O futebol talvez não seja um assunto tão interessante para a ficção. Talvez por ser um desporto colectivo. Talvez seja mais fácil fazer um romance sobre um boxeur ou um corredor, mas também não há grande literatura de ficção sobre desportistas. Talvez ainda não se tenha descoberto a fórmula para usar um desportista como elemento de ficção. O cinema em relação ao futebol é quase impraticável. Filmaram o meu livro sobre o Garrincha. É um dos piores filmes de todos os tempos. É horrível. É um filme com todos os defeitos que você possa imaginar. O actor, que até é muito popular, começa no filme com 19 anos, com carinha de 19 anos, e termina aos 49 com a mesma cara, o mesmo corpo. O Garrincha morreu aos 49 anos, mas parecia que tinha 89 anos. E tinha uma perna mais curta do que a outra, como é que esse actor vai driblar da mesma forma que o Garrincha? O futebol é uma realidade muito forte para ser ficcionada. No livro, o Garrincha vai para a cama com umas cinco ou seis mulheres. Cada cena dessas tem uma linha e meia. No filme tem dez minutos.

Entregou agora um novo livro. É sobre o quê?

É uma colectânea sobre textos de futebol, publicados em vários meios nos últimos 15 anos. É para uma editora nova, chamada Foz. Como há Copa, todo o mundo está querendo publicar livros sobre futebol. Não quis fazer um livro sobre vitórias ou derrotas ou esquemas tácticos. Tenho é uma série de textos sobre jogadores, situações, personagens do futebol. É mais sobre o aspecto humano. O nome é Os Garotos do Brasil — Um Passeio pela Alma dos Craques.

E esse livro de crónicas tem alguma unidade?

É um pouco a ideia de que os jogadores são diferentes na vida real. Esse tipo de ideia que unifica o livro só surge depois de fazer a selecção das crónicas. Só quando se relê, se descobre a coisa comum. Nenhuma crónica é exactamente sobre futebol, todas se passam no mundo do futebol, só uma ou duas falam de jogos. Não trata de golos, nem de dribles.

Esse novo livro será publicado em Portugal?

Portugal não publicou nem a Bossa Nova, nem livros do Nelson Rodrigues. Bossa Nova já saiu no Japão, Alemanha, Itália e em Portugal não. O do Garrincha já saiu na Inglaterra, Alemanha, Itália, Polónia e não saiu em Portugal. O livro sobre o Flamengo já saiu até no Japão e em Portugal não.

Qual é a explicação?

Não sei. Talvez o facto de ser a mesma língua, mas aqui editamos todos os portugueses. Se for português tem edição garantida no Brasil. Até os que não são bons, como os mães. Eu não saio na imprensa portuguesa. Em Portugal, publicaram a Carmen, com edição horrível, na editora Palavra. O livro foi traduzido para português de Portugal. Em Portugal, só saiu o Carnaval no Fogo e o romance Era no Tempo do Rei.

Como tem visto o acordo ortográfico?

Sou totalmente contra. Não aderi. Continuo escrevendo do mesmo jeito. Se querem mudam no jornal, revista ou livro, eu escrevo do mesmo jeito. Não há necessidade. A coisa extraordinária da língua portuguesa é que em Portugal se escreve de uma maneira e no Brasil de outra. Falamos de maneira diferente e todos nos entendemos. É uma estupidez essa tentativa de unificação, porque vai agredir uma ou outra e no caso sei que agrediu mais a língua portuguesa de Portugal. Estou muito velho para reaprender a escrever. Aos 60 anos, não vou mudar, para adoptar medidas que acho inúteis.     

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UESLEI MARCELINO/Reuters

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