Milhares rodeiam palácio de Morsi para dizer que não querem Constituição islamista

Juízes apelam ao boicote do referendo de 15 de Dezembro, jornais não saíram nesta terça-feira em protesto contra "ditadura do Presidente". Manifestação da oposição levou milhares de pessoas até Heliópolis para gritar "o povo quer a queda do regime".

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Um soldado ergue uma bandeira frente ao palácio presidencial GIANLUIGI GUERCIA/AFP

Os manifestantes que se concentraram em torno do palácio presidencial do Egipto, no Cairo, para protestar contra o Presidente Mohamed Morsi, atravessaram as barreiras da polícia, que respondeu com gás lacrimogéneo. O Presidente deixou o palácio e foi para o seu apartamento, enquanto a manifestação continuava.

É sobretudo a oposição laica, as elites do Cairo, que foi para Heliópolis manifestar o seu desagrado com a actuação do Presidente da Irmandade Muçulmana, notava o repórter do New York Times no local. Foi uma demonstração dos egípcios laicos: saíram à rua para protestar contra o decreto de 22 de Novembro através do qual o Presidente assumiu poderes extraordinários, inclusivamente os de ignorar qualquer contestação em tribunal, e também contra a nova Constituição aprovada à pressa pela Assembleia Constituinte dominada pela Irmandade e outras forças islamistas.

A polícia recuou, após um embate inicial, possivelmente por estar em minoria, e refugiou-se no interior do palácio. Há notícia de mais manifestações noutras zonas do Cairo: Tahrir, Maspero, Praças Juhayna, e Maadi, e também em Alexandria, a segunda maior cidade egípcia.

Os manifestantes frente ao palácio presidencial gritaram “o povo quer a queda do regime" – a mesma palavra de ordem que se ouviu para reclamar o afastamento de Hosni Mubarak em 2011, o ditador que durante décadas governou o Egipto. Levavam bandeiras onde se lia “não à Constituição” terminada na sexta-feira e enviada ao Presidente no sábado. A manifestação era composta por uma mistura de simpatizantes e líderes da oposição.

“Muitos dos nossos líderes nacionais e a juventude juntam-se hoje às nossas marchas”, disse à Reuters Hussein Abdel Ghany, um porta-voz desta coligação da oposição. “O nosso protesto é contra a tirania e o decreto constitucional oco e não recuaremos enquanto as nossas exigências não forem satisfeitas”, disse ainda Ghany. Ouviam-se palavras de ordem que mencionavam a Irmandade Muçulmana, dizendo que tinha sido traída a revolução egípcia. "Mohammed Morsi! Ilegítimo! Irmandade! Ilegítima!", clamava-se, num relato do jornal The Guardian.

Morsi convocou um referendo para 15 de Dezembro, para votar a nova Constituição, mas há um sentimento de revolta em relação à Constituição elaborada pelos conservadores islâmicos. Amr Moussa, ex-líder da Liga Árabe e agora uma figura destacada da oposição, que se demitiu da Assembleia Constituinte, fez hoje declarações críticas em relação à Constituição: “Este documento deve ser algo que torna a vida mais fácil para os egípcios e não exigir interpretações difíceis, algo que faz medo às pessoas. Estamos no século XXI”.

Críticos da Constituição e grupos de direitos humanos apontam muitos buracos por onde se podem esvair direitos fundamentais. O New York Times exemplifica que, embora seja declarado o direito à liberdade de expressão, são proibidos expressamente "insultos" aos profetas religiosas - algo que pode ter uma interpretação muito alargada. Estabelece também que um dos objectivos dos meios de comunicação é promover a moralidade pública e a "verdadeira natureza da família egípcia" - e especifica que será necessária a autorização do Governo para abrir um canal de televisão e também um site na Internet. 

Apelo ao boicote
A revolta expressa-se também em relação ao referendo. O Conselho Supremo Judicial aceitou supervisionar a votação, mas muitos juízes, a quem o decreto presidencial de 22 de Novembro retira poder de se arbitrarem sobre actos da administração do Estado, recusam-se a supervisionar o referendo e apelam ao boicote.

Ahmed al-Zind, o presidente do Clube dos Juízes, um sindicato profissional a favor do boicote, anunciou nesta terça-feira que “não perdoaria” aos magistrados que supervisionassem o voto. O número dos juízes que se opõem ao referendo é superior aos que lhe são favoráveis.

A resistência civil o decreto de Morsi – em relação ao qual a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, manifestou a sua preocupação – abrange outros sectores da sociedade egípcia. Nesta terça-feira, os jornais independentes mais lidos não foram publicados, em protesto contra a “ditadura” de Morsi, e os bancos fecharam três horas mais cedo.

Morsi tem de desistir do seu decreto, disse Mohamed ElBaradei, ex-director da Agência Internacional da Energia Atómica da ONU e Prémio Nobel da Paz, agora coordenador da Frente de Salvação Nacional, na oposição, num artigo de opinião no Financial Times. Acusou o Presidente e a Irmandade de “pensarem que podem obrigar o Egipto a entrar em coma outra vez, apenas com meia dúzia de linhas”. Se continuarem por este caminho, avisou, “arriscam-se a provocar “uma erupção de violência e caos que destruirá a mala da sociedade egípcia”. 

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