Hoje, pois claro, tenho de falar do Mundial

Um jornalismo sério e responsável não pode contribuir para alimentar estados de euforia que não justificados acrescentam aos povos as desolações que eles já sofrem por tantas outras situações, mais reais e graves.

Face a esta enorme frustração potenciada pela desajustada expectativa criada, agora, ninguém escapa: jogadores, treinadores, médicos, responsáveis federativos. E como tal, também os jornalistas e os comentadores. Estes elementos dizem respeito ao núcleo interno do nosso seleccionado. Depois, vêm os factores externos: a organização da FIFA, os árbitros, as condições climáticas.

Por um lado, emerge mais uma vez a força catalisadora do futebol que goza de uma inigualável popularidade reunindo multidões multinacionais desde os estádios onde esse futebol se joga às praças públicas diante de gigantescos ecrãs ou defronte dos televisores que fazem de cada  bar ou lar doméstico um miradouro com a mais extensiva visão universal.

Mas juntam-se igualmente os ingredientes de substrato subjectivista que envolvem o feiticismo dessa força catalisadora: pugna, paixão, acaso, patriotismo, revanchismo, elixir da vitória, decepção da derrota.

Por outro lado, na contemporaneidade, e mercê desta vertente fortemente amplificadora dos fenómenos desportivos, há, aqui, o elo firmado pela celebração deste “casamento com comunhão de bens” entre o desporto e media, bem estreitado, e de modo decisivo, entre futebol e televisão. Não fossem os media de alta potência electrónica e o futebol não seria hoje aquela proveitosa indústria, autêntico maná na sua dimensão económica.

E assim sendo, não admira que jornalistas e comentadores sejam considerados coniventes comparsas neste enredo que se constrói à roda de um evento global como é um Mundial de futebol. Pelo que dizem, pelo que não dizem, pelo que disfarçam ou escondem, pelo que revelam. Não admira que no êxito sejam esquecidos. No insucesso, na derrota, com a busca intermitente de “bodes expiatórios”, não é de estranhar que sejam também visados como “culpados”. E se esta versão não é completamente justa, não é de todo inquestionável. O total falhanço da representação da “nossa” selecção neste Mundial tem diferentes culpados. É que não foi a derrota. Perder e ganhar faz parte do desporto. E na ética desportiva é tão importante saber perder como saber ganhar. Foi o descalabro de uma selecção que não tendo igual valor significante com o 4.º posto mundial que lhe conferia, antes desta Copa, o ranking da FIFA (mais uma vez os números a nos enganarem) tinha bastas condições e bons requisitos para exibir outro comportamento. Nas condições teremos de englobar o enorme investimento financeiro (em contra corrente à crise financeira do país) que é feito nesta selecção. Nas condições da qualidade de jogadores que não tendo, porventura, o nível global da chamada “geração de ouro”, têm uma valia muito acima da demonstrada.

Deixemos os “experts” da matéria escalpelizar as lógicas ou ilógicas das escolhas de Paulo Bento e dos responsáveis federativos, da preparação física e mental dos atletas, da opção do estágio norte-americano (porventura, mais uma vez provando que o barato, por vezes, sai caro), da inexplicável junção de tanto jogador potencialmente “aleijado”.

Mas, interessa que, no campo da comunicação social, já que os jornalistas em geral são tidos também como responsáveis neste malogro desportivo, com forte repercussão no estado motivacional e no orgulho identificador da própria identidade de um povo, em que entra a componente desportiva, estes profissionais dediquem particular atenção à “desmontagem do circo”, introduzindo análises e ajuizamentos que ajudem a situar este “psicodrama nacional”, no seu devido plano. Interessa que não protejam acobertados ou bem protegidos corporativismos dos intérpretes deste mundo futebolístico.

Em primeiro lugar, os jornalistas e comentadores terão de desmitificar a tese defendida por aqueles que formam o núcleo duro da “tribo do futebol”: Isto é uma coisa que só quem está cá dentro, nos estágios, nos balneários, dentro do terreno de jogo, é que sabe. É uma autêntica falácia. No espectáculo público, seja do desporto, seja da política, seja do cerimonial religioso, as coisas percebem-se como aparecem. E como tal são entendíveis no conluio da sua própria génese. Não se consinta fazer do espectáculo desportivo, de um jogo de futebol, um mistério. A resultante de um processo labiríntico que só os seus iluminados agentes internos dizem saber. O futebol tem de facto um elevado grau de contingência (que faz aliás aumentar o seu sortilégio), mas daí a reservá-lo qual inexpugnável búnquer é falsear a questão. O futebol é o jogo mais simples dos desportos, o que justifica grande parte da adesão popular que tem. Obviamente, à escala da sua prática profissional, é construído com componentes científicas, desde a fisiologia e psicologia humanas às técnicas de sistemas e de estratégias e tácticas a serem praticadas no terreno, mas uma vez sobre o relvado é o que está lá.

Os media fazem parte deste alto negócio que é um Mundial. É ver como eles cegamente se entregam a este megaevento. Mas, eticamente, não podem deixar de combater e pôr a nu esta desumanidade imposta pela FIFA de sujeitar os atletas a jogar à uma da tarde com elevadas temperatura e humidade. E não é pelo desporto. É pelo negócio globalizado.

Um jornalismo sério e responsável não pode contribuir para alimentar estados de euforia que não justificados acrescentam aos povos as desolações que eles já sofrem por tantas outras situações, mais reais e graves. E o Mundial de futebol se não é para entreter, divertir e alegrar o povo, é melhor não existir.

Esclareço que não recebi queixas concretas sobre a cobertura que tem vindo a ser feita pelos jornalistas e comentadores do PÚBLICO a este Mundial. Aliás, recebi elogios à sua contenção. Mas recebi avisos generalizados a pedir que os jornalistas não abdiquem do papel crítico que lhes compete por compromisso social da profissão. E por isso, em especial aos profissionais do PÚBLICO, deixo aqui este apelo.

 

DO CORREIO DO LEITOR/PROVEDOR

A "REVOLTA NA PONTE 25 de ABRIL":

Escreve um leitor a lamentar ter passado quase desapercebido nos media, e como tal no PÚBLICO, o 20.º aniversário da chamada "revolta popular na Ponte 25 de Abril". (24.06.1994). Como se sabe – diz – a revolta foi provocada devido ao aumento da portagem de 100$00 para 150$00. Relembrar o acontecimento seria uma forma de desmontar o "embuste" das PPP.

Comentário do provedor: Provavelmente o leitor tem razão. Chamadas de atenção a factos como estes, (embora fora dos compêndios da nossa História recente), poderiam ter reflexo na consciencialização da opinião pública e na responsabilidade que temos nos nossos destinos.

O DEBATE NAS PÁGINAS DO PÚBLICO:

De uma longa carta de um leitor com diversas considerações dirigidas ao provedor extraio o seguinte parágrafo: "Sou dos que acho que uma das maiores fragilidades – e um dos motivos da sua insustentabilidade – do actual jornalismo é a 'estreiteza' do debate público que possibilita. Os jornais carecem de leitores e os leitores gostam de diversidade e pluralismo. Gostam de inovação e de confronto democrático. O debate oxidado não cativa os leitores e cria um irremediável afastamento entre leitores e o jornal que era suposto ser deles."

Comentário do provedor: Tomei na devida conta as observações muito positivas que me faz. Dei conta à Direcção das suas recomendações.

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