Olá. Esta newsletter segue com dois dias de atraso porque fui apanhar ar fresco em Montreal, no Canadá, durante um fim-de-semana prolongado. E que fresco: a temperatura chegou a -20ºC na noite de sábado para domingo. Na próxima semana, a newsletter sai segunda-feira, como habitual. Muito obrigado pela leitura.​

As fake news já tiveram piada. Anos antes de o termo ter ganho o actual sentido trumpiano, a sátira noticiosa de Jon Stewart e do seu Daily Show, entre 1999 e 2015, foi um bálsamo de humor e sanidade, mas também de informação.

O programa de Stewart, que sempre recusou ver-se como fazedor de jornalismo, tornou-se durante vários anos numa das principais fontes noticiosas e de reflexão para toda uma geração de norte-americanos, e numa janela para a actualidade norte-americana para muitos que a observavam de fora.

Antes da bem-vinda febre do fact-checking, Stewart foi um exímio detector de bullshit, fazendo aquilo que os jornais e as televisões deixavam por fazer, sobretudo naqueles anos de unanimismo patriótico do pós-11 de Setembro que toldou as vistas à América.

Foi ainda um crítico precoce e veemente da fórmula de comentário político televisivo que acabaria por vingar nos Estados Unidos e além-fronteiras: o do debate redutor, sectário e maniqueísta entre um boneco de direita e um boneco de esquerda, que tanto contribuiu para a intoxicação discursiva dos nossos dias (vale a pena ver ou rever a participação explosiva de Stewart no Crossfire da CNN, em 2004, com Paul Begala e Tucker Carlson).

Stewart nunca escondeu ao que vinha, que era um tipo de esquerda, urbano, um judeu hipocondríaco de Nova Jersey, como uma personagem dos romances de Philip Roth. Isso não o impediu de criticar os democratas, de ridicularizar os dogmas da política externa norte-americana, ou de dar palco a figuras do republicanismo moderado (John McCain era frequentemente convidado), hoje em vias de extinção.

Às costas de um apresentador carismático e de uma equipa de escribas dotados, o modelo de telejornal satírico do Daily Show foi replicado internacionalmente até se tornar num género próprio (Ricardo Araújo Pereira, Gregório Duvivier ou Diogo Batáguas são bons exemplos na nossa língua; em formato impresso, foi-lhe contemporâneo aqui no PÚBLICO o Inimigo Público, que teve versão televisiva na SIC e no Canal Q). Stewart e a sua produção na Comedy Central foram ainda extraordinários caçadores de talentos, como foram exemplo Stephen Colbert, Steve Carell, John Oliver, Ed Helms, Samantha Bee e Hasan Minhaj.  

A sucessão de Stewart em 2015, dada esta rede de alumni, foi uma desilusão. Trevor Noah foi uma figura simpática mas descafeinada na liderança do Daily Show, que entrou numa espiral de irrelevância, apesar de toda a matéria-prima satírica que a era Trump fornecia. A centralidade que as redes sociais adquiriram no espaço público e o declínio da televisão linear também terão tido alguma coisa a ver com isso, mas o relativo sucesso dos programas sucedâneos de John Oliver e Hassan Minhaj mostrou que continuou sempre a haver um público para um Daily Show – o que não havia era um Daily Show à altura.

De forma sintomática, não saiu da era Noah, terminada em 2022, nenhum nome evidente para pegar no programa. É assim que se dá, quase dois anos depois, o regresso em part-time de Jon Stewart, que desde dia 12 voltou a apresentar o Daily Show às segundas-feiras. E a primeira boa notícia é que regressou em forma. Voltámos a ter um Daily Show à antiga, mordaz, pertinente e exigente, em ano de eleições presidenciais norte-americanas.

A segunda boa notícia é que sim, continua a haver um público para o Daily Show. A Joana Amaral Cardoso dava conta aqui há dias na sua newsletter Próximo Episódio que a edição do regresso de Jon Stewart tinha sido vista por quase dois milhões de espectadores. Mas no YouTube há um clipe desse episódio com nove milhões de visualizações. O monólogo inicial do segundo episódio, a desancar em Tucker Carlson como idiota útil de Vladimir Putin, conta já com seis milhões de visualizações, também no YouTube, em pouco mais de um dia. As versões fatiadas para telemóvel multiplicam-se no Instagram, TikTok e X.

A Joana acha que são números que justificam pensar em trazer o Daily Show de volta para Portugal, onde chegou a passar na SIC Radical (na primeira era Stewart) e na RTP (na versão Global Edition de Trever Noah) – e tem razão.

Também há quem não partilhe o entusiasmo, evidentemente. Nas redes sociais e nas colunas da imprensa norte-americana ataca-se o bothsideism de Stewart. O âmago dessas críticas centra-se no excerto do primeiro episódio em que Stewart aborda a questão da idade e do possível declínio cognitivo do actual Presidente norte-americano e recandidato democrata, Joe Biden, de 81 anos. Stewart, escreve-se, deveria dirigir a sua sátira apenas contra Trump, em nome da democracia.

Stewart diz que não perde o sono com o que se diz no antigo Twitter, onde "até se mandam labradoodles para o c***", e desmonta o argumento: "O que está em causa nestas eleições não faz do adversário de Donald Trump alguém menos sujeito ao escrutínio. Na verdade, torna-lo sujeito a maior escrutínio. Se os bárbaros estão à porta, precisamos do Conan nas muralhas."

Mas esta primeira leva de reacções negativas mostram que, se Stewart não mudou muito desde 2015, o mundo, sim, mudou. E que, em 2024, ninguém no espaço público parece estar à altura de testes de pureza ideológica e ética cujo grau de exigência cresce rumo ao absurdo, sobretudo nas redes sociais. Mas Stewart faz falta, como faz falta o poder da sátira e da crítica. Não só perante o radicalismo, também face ao inferno das boas intenções.