Nações Unidas contra Deus… “há 3000 anos”
Não há bons extremistas religiosos. Não há. Sejam muçulmanos, judeus, cristãos, hindus ou budistas, os extremistas desumanizam os outros seres humanos, e não há maior crime do que esse.
Ao ouvir o primeiro-ministro de Israel a lançar a segunda fase da guerra, não estava à espera de nada diferente daquilo. Israel a ser Israel. Com ou sem 7 de Outubro, é muito claro que o objectivo de Israel é eliminar o povo palestiniano e uma das provas cabais é o argumento dos fanáticos do “há 3000 anos” que Netanyahu refere no discurso inflamado de guerra no sábado, e que me surpreendeu que fosse por ele entregue ao mundo para digerir.
O que mais me espantou quando vivi e trabalhei em Gaza, e nessa altura mergulhei nalguns livros e documentários sobre esta guerra, com a total abertura para ouvir os dois lados, que para alguns tem 75 anos, mas para outros tem 3000, foi exactamente o fanatismo dos que, com a sua paranóia, que só pode ser visto como um delírio colectivo obcecado, diziam para justificar mais e mais construções de colonatos numa terra que, segundo as Nações Unidas, não é deles, seria porque os seus “trisavôs” ali viveram há 3000 anos na “terra prometida”. Logo, a terra é deles por direito à nascença.
Isto é argumento de fanáticos. O ganho moral por ser uma democracia é totalmente anulado pela pérfida fundação de um Estado numa religião, o que é absolutamente inaceitável, porque com a religião a contaminar a política, seja ela qual for, vem sempre o fanatismo, a intolerância e a arrogância moral de superioridade, o que leva a inferiorizar e desumanizar os diferentes, ou seja, os não-judeus, neste caso.
Quando o Estado de Israel e o seu advogado de defesa, os EUA, fazem comparações simplistas e erradas, do Hamas com o Estado Islâmico, para empurrar o mundo para dicotomias de bons e maus, talvez fosse bom lembrar que os argumentos de Israel para matar este povo árabe e muçulmano (e cristão) são os mesmos que o Estado Islâmico usava para sonhar com o califado que viria inclusive até à Península Ibérica: “Isto foi nosso no tempo dos nossos “trisavôs”, logo será nosso, para sempre, por direito, porque assim o dita a interpretação extremista da (minha) religião.”
Não há bons extremistas religiosos. Não há. Sejam muçulmanos, judeus, cristãos, hindus ou budistas, os extremistas desumanizam os outros seres humanos, e não há maior crime do que esse. E essa tem sido a máquina de propaganda de Israel ao plantar no Ocidente a certeza de que os palestinianos são apenas meio-humanos. O ataque enraivecido contra António Guterres é só mais uma prova disso mesmo, não admitem que o mundo veja este povo oprimido e esmagado há décadas como humanos.
Admitiu numa entrevista há dias, à Renascença, Richard Zimler: "Hesitei várias vezes em falar consigo, porque sempre que eu falo de Israel, essa máquina de relações públicas entra em contacto comigo, e insulta-me." E diga-se que a grande esperança reside em pessoas como ele: judeus, mas moderados, porque é por dentro que se combatem as ideologias ignorantes.
Israel é o país do mundo que mais vezes desrespeitou as resoluções das Nações Unidas, porque o seu Deus só quer saber o que se decide em Nova Iorque quando é em Wall Street, e não quando todos os países do mundo se sentam à mesa para discutir o certo e o errado do rumo da humanidade.
Para que não se seja mal interpretado, tem que se dizer em todas as intervenções: sim, condeno os actos terroristas do Hamas, e já os condenava quando tive o desprazer de cruzar o meu caminho com o deles. Mas porque é que as pessoas não são também, moral ou literalmente, obrigadas a sempre que se referirem a Israel os designarem como Estado Apartheid de Israel, porque assim foi deliberado pelas Nações Unidas? Apenas por um só motivo, porque nós ocidentais, consciente ou inconscientemente, consideramos os israelitas como iguais a nós, e os palestinianos como inferiores. E reconhecer o preconceito dói, mas é o primeiro passo para lutarmos contra ele.
Passando dos grandes decisores para as conversas de rua, há dois dias, no meu bairro, uma senhora que eu conheço da vizinhança abordou-me de uma forma meio envergonhada, carinhosa e genuinamente preocupada.
– “O doutor já esteve naquele sítio, não foi?”
Eu não estava minimamente à espera, por isso fui respondendo, sem saber muito bem onde ia esta conversa…
– “Onde? Na Palestina? Sim, já lá estive.”
E ela reforçou…
– “Mas naquele sítio mesmo, onde estão a cair as bombas?” – dando a entender que não lhe saía o nome.
– “Em Gaza? Sim, já lá trabalhei.”
– “E como é que são as pessoas?”… veio-me tanta coisa à cabeça em dois segundos que a primeira coisa que me saiu e que não alimentasse clivagens foi:
– “São pobres.”
Mas ela não ficou contente, e queria que eu desenvolvesse mais.
– “Não é isso. Mas como é que eles são mesmo? Assim… mesmo… como é que eles são?”
E eu rematei:
– “São normais, iguais a nós.”
A forma como ela fez a pergunta é claramente xenófoba, porque estava à espera que eu os descrevesse como os media ocidentais os descrevem, como meio-humanos, mas também é verdade que a sua aproximação e curiosidade denotavam uma vontade de ver para além das diferenças. Louvável, porque conseguiu o que os EUA e a Europa não conseguem, e que me parece que nos vai sair muito caro.
Os judeus têm 3000 anos, os muçulmanos, “coitados”, são mais “recentes”, apenas têm 1400 anos, mas são quase 25% da população mundial de Marrocos até à Indonésia, e como se não fosse suficientemente grave a aniquilação do povo palestiniano, o que sairá daqui é uma total descredibilização do Ocidente perante o mundo, pela sua hipocrisia cruel, que, ao dar luz verde à chacina de um povo, vai ter muita dificuldade em evocar os direitos humanos, o direito internacional, e até o certo ou o errado, em questões onde tem toda a razão, como a defesa da soberania da Ucrânia.
Entretanto, foi assassinada mais uma criança em Gaza… é uma a cada dez minutos. Já são mais de 3200 crianças sentenciadas à morte pelo crime de terem nascido no local errado do planeta. Mas, isso, o que é que interessa? De que é que vale mais uma resolução das Nações Unidas a pedir que os hospitais em Gaza deixem de ser apenas morgues? Para o tal Deus de 3000 anos de idade, pelos vistos, não vale nada. Quando ele veio “cá” não havia Nações Unidas, nem muito menos a carta internacional dos direitos humanos. E, por isso, adaptem-nos à idade das trevas.
Quando os argumentos são divinos, e não humanos, vivem os deuses e morrem os homens.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras