Como amam os defeituosos como eu
O horror generalizado da minha família, quando participei que rejeitava prosseguir com o ofício da maternidade, não me impediu de pôr em prática o meu plano de libertação.
Aprendi cedo que pequenos gestos desapreciados ou ignorados vão formando sentimentos de frustração e tristeza que se podem agigantar perante a evidência do desamor. Conheci o meu filho já adulto, mais propriamente no dia do seu 23.º aniversário.
O homem que me abriu a porta de casa, onde eu própria nasci e vivi até ser mãe, foi criado pela minha irmã que nunca teve filhos nem intenção de os ter, mas que se ofereceu para ficar com o meu filho quando, seis meses depois do seu nascimento, comuniquei que o iria entregar a uma instituição.
O horror generalizado da minha família, quando participei que rejeitava prosseguir com o ofício da maternidade, não me impediu de pôr em prática o meu plano de libertação. É preciso que se saiba que foi uma gravidez desejada, por mim e pelo pai do meu filho, que, por um infortúnio de viação, me deixou desamparada na tarefa de progenitora.
O meu filho, que me veio abrir a porta e que me via a mim pela primeira vez sem ser por fotografias antigas, porque desde a minha partida deixei de comunicar o meu paradeiro, era aquilo a que se podia chamar de clone. Podia ser eu numa versão masculina. Os meus olhos de rato, a mesma pele imperfeita e sardenta, o mesmíssimo cabelo escorrido entre o ruivo e loiro. Não tive dúvidas de que era o meu filho.
Desenganem-se os leitores com a expectativa de uma cena emotiva; na verdade, o único sentimento que me assaltou foi espanto. Espanto por ver um homem, uma pessoa, alguém que parecia, sem tirar nem pôr, o meu reflexo. Não fui recebida com afecto, nem sequer o esperava, mas julgo ter reconhecido nos olhos do meu filho o mesmo assombro ao ver a minha imagem.
Também ele se reconheceria no meu rosto ao ver-me agora por segundos, assim, frente a frente? Apertámos as mãos. Eu, com o pouco vigor com que fiquei depois do acidente vascular cerebral, que me afectou a mobilidade do lado direito; ele, com a força típica de um homem da sua idade. "Parabéns", disse-lhe. Não agradeceu.
Foi a primeira vez que lhe ofereci aquelas palavras que celebram a sua existência. Como vos disse antes, abandonei-o antes de ele completar o primeiro ano de vida. Sei que não sou boa pessoa. Não espero piedade nem compreensão do meu filho, nem de quem me lê. Sei que me era impossível criar um filho sozinha. Quando o pai dele desapareceu num acidente de viação, levou consigo o meu desejo de ser mãe.
Eu ainda tentei durante os primeiros meses de vida do bebé, mas fui incapaz de lidar com a tarefa que me acorrentava ao berço e à responsabilidade perpétua sobre aquela pessoa em miniatura. E agora ali estava diante de mim, não um bebé, mas um homem. Não parecia interessado na minha vinda.
Depois de entrarmos na sala, desapareceu para o fundo da casa, onde calculo que seja o seu quarto. Sentei-me no sofá. Era outro, não o mesmo canapé de tecido cinzento-escuro que serviu de cama durante parte da minha infância. Não voltei por causa do meu filho. Triste coincidência o seu aniversário ter calhado na semana em que lhe morreu a avó.
Também não posso dizer que lamento a perda da pessoa que me trouxe ao mundo. Vim porque quis certificar-me da sua morte. Sabia que para isso teria de enfrentar este momento, e outros, com um filho que não conheço. Na minha família há uma longa linhagem de desencontros e fatalidades.
Oiço a chave entrar na fechadura. Deve ser a minha irmã. Dela, sim, tenho saudades. E sinto culpa por não nos vermos há tanto tempo. Vejo-a entrar na sala. Envelhecida como eu, agastada, e sem ter perdido o olhar vivo. Amo-a, como amam os que nunca foram amados. Por defeito, como amam os defeituosos como eu.