Na emergência o Governo escolheu, e escolheu bem
A decisão é terrível: a primeira opção leva a uma destruição maior da economia, embora noutros países seja claro que permite achatar a curva mais depressa. A segunda opção mantém a economia “ligada à máquina”, mas à custa de efeitos lentos no achatamento da curva. Perante os níveis de novos casos registados em certos concelhos, tenderá a haver maior sobrecarga dos internamentos e maior atraso na resposta às doenças não-covid. O Governo optou pela segunda opção.
O Presidente da República e o primeiro-ministro estiveram irrepreensíveis na declaração sobre a renovação do segundo estado de emergência e na conferência de apresentação das medidas que vigorarão nesse período. Dito de outro modo: se estivéssemos na pele de Marcelo e de Costa dificilmente teríamos feito melhor fazendo diferente. Esta é a avaliação justa e racional, ignorando as eleições presidenciais que estão à porta e as preferências partidárias de cada um de nós.
Isso não ignora que a pandemia esteja a ser jogada no xadrez político e de estarmos a tentar acertar a estratégia em plena situação de descontrolo. Estas decisões ocorrem em Portugal quando a média nacional a 14 dias está acima dos 700 casos/100.000 habitantes, enquanto na Alemanha ou Dinamarca as decisões correspondentes ocorreram em torno dos 300 casos/100.000 habitantes. Ninguém sabe como estaremos e como os outros estarão em quatro, oito ou 12 semanas. Sabemos é que chegámos aqui demasiado depressa e sem termos feito todo o trabalho de casa.
Tampouco me detenho no pormenor das medidas anunciadas pelo Governo. Dou de barato que possam existir inconsistências, carência de explicações ou a falta de medidas mais adequadas. Não é sobre isso que me debruço.
Debruço-me sobre o caminho que temos pela frente e sobre as escolhas que precisavam ser feitas. Portugal está duplamente exposto: à covid-19 e à economia. Nenhuma destas vulnerabilidades é nova nem causa surpresa. Sempre soubemos – ainda que tenhamos normalizado – que se morre demasiado por infeções respiratórias (pense-se na gripe e na pneumonia) e sempre soubemos que a estrutura produtiva, as características laborais e os níveis salariais dificultam o que tem sido pedido às pessoas para travar os contágios. As coisas seriam mais fáceis se a dívida pública fosse mais baixa, se os salários fossem mais altos, se houvesse menor precariedade laboral, se houvesse maior diversidade das atividades económicas excessivamente dependentes do turismo e se os apoios públicos fossem mais rápidos e efetivos perante as queixas dos empresários.
O acerto do Presidente da República e do primeiro-ministro foi no plano discursivo, mas sobretudo no plano substantivo. Há coisas que efetivamente continuamos a não saber (por exemplo, por que motivo as medidas de proteção individual – em concreto a utilização obrigatória de máscara na rua e nos espaços fechados – não atenuaram a subida exponencial de contágios nos países europeus). Mas há coisas que sabíamos e que finalmente estão a ser postas em prática.
O erro de apontar o dedo às pessoas foi ultrapassado. O erro de comunicar certezas sobre temas em que só temos um punhado de incertezas também não se verificou. O erro de omitir às pessoas o longo caminho que terão pela frente com o pretexto de as proteger já não existe. O medo parece estar a dar lugar à consciencialização. A necessidade de divulgar informação às pessoas que lhes permita formular perceções de risco aproximadas à situação epidemiológica das suas comunidades está a ser desenvolvida através dos semáforos de risco epidemiológico. Este semáforo também permite tratar diferente o que é diferente, com medidas mais e menos restritivas de acordo com o risco de contágio (o chamado escalonamento em quatro níveis).
Há riscos, muitos riscos, e o caminho é estreito. Perante os factos só restava ao Governo uma de duas opções: colocar um travão imediato nos contágios através, por exemplo, de confinamentos nos concelhos de risco muito elevado ou extremamente elevado (acima dos 480 casos/100.000 habitantes), ou manter as lógicas das medidas adotadas desde 4 de novembro e que incluem, entre outras coisas, o recolhimento obrigatório à noite e durante partes do dia aos fins-de-semana.
Convenhamos que a decisão é terrível: a primeira opção leva a uma destruição maior da economia, embora noutros países seja claro que permite achatar a curva mais depressa. A segunda opção mantém a economia “ligada à máquina”, mas à custa de efeitos lentos no achatamento da curva. Perante a incidência de novos casos registados em certos concelhos, tenderá a haver maior sobrecarga nos internamentos e maior atraso na resposta às doenças não-covid. O Governo optou pela segunda opção.
É a decisão mais prudente e mais bem fundamentada dada a evidência de que as medidas tomadas nas últimas semanas estão mesmo a desacelerar o ritmo de contágio. Contudo, teremos pela frente longas semanas de pressão sobre o SNS e sobre e as populações. Na circunstância de colapso dos serviços de saúde é possível que a opção em certos concelhos tenha que mudar para confinamentos mais musculados. Isso não pode ser omitido nesta fase nem ser considerado como um revés.
Mas entre as opções duas coisas ficaram em falta no discurso do primeiro-ministro: não houve nenhuma referência ao reforço das equipas de saúde pública (as forças armadas vêm ou não vêm fazer rastreios?) e à política de testagem nos aeroportos. Ambas são essenciais para monitorizar a circulação do vírus e diminuir as restrições à mobilidade.