Feira do Cavalo: Junta da Estrela e empresários andam aos "coices"

O evento equestre realizado em 2016 está metido num imbróglio. Há dívidas por pagar, protocolos que ninguém viu assinados e muitas contradições. Vai tudo acabar em tribunal.

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O evento de Lisboa inspirou-se no que se realiza anualmente na Golegã guilherme marques

Os cavalos já foram embora há muito, mas uma zebra, um flamingo e não só continuam a suportar o pesado fardo da Feira do Cavalo de Lisboa. Um conjunto de empresas acusa a Junta de Freguesia da Estrela de lhes dever milhares de euros por serviços prestados na organização deste evento, que decorreu em Setembro passado no Terraplano de Santos, à beira do Tejo.

À cabeça das acusações está André Rebelo, sócio e gerente da Zebra Vaidosa Unipessoal, uma empresa de produção de eventos mais conhecida pelo seu nome comercial: MAG Brand & Entertainment. A junta da Estrela contratou-o para a organização da Feira do Cavalo de 2016 e, alega o empresário, nunca lhe pagou tudo o que devia. Além disso, quando vários fornecedores contactaram a junta para receber valores em dívida, esta chutou responsabilidades para a Zebra Vaidosa, escudando-se num protocolo que teria sido celebrado com André Rebelo.

O empresário, no entanto, nega a existência de tal documento. “Eu desafio o presidente da junta a irmos a tribunal e ele que mostre onde é que há o protocolo assinado. Eu desafio-o a que ele seja mostrado em público. Não existe”, diz André Rebelo. O PÚBLICO pediu ao autarca da Estrela para ver esse protocolo e outros documentos relativos a este assunto, mas Luís Newton, eleito pelo PSD, recusou, dizendo que os mostrará “no momento oportuno e nas instâncias próprias”.

Quem foi o pai da criança?

Os diferendos em redor da Feira do Cavalo de Lisboa começam logo na questão da paternidade. Realiza-se todos os anos na Golegã a Feira Nacional do Cavalo, que serviu de inspiração ao certame lisboeta. Luís Newton afirma, como fez aliás ao PÚBLICO em Setembro passado, que a ideia foi dele. André Rebelo e Nuno Melo, sócio da empresa de logística R2M, desmentem-no. “Nós tínhamos a ideia de trazer várias feiras representativas de Portugal até Lisboa. A ideia não vem dele, a ideia foi nossa”, garante André Rebelo. A junta da Estrela, afirma, limitou-se a dar luz verde e dinheiro -- mas não todo.

“Começámos contactos em finais de 2015 com a câmara da Golegã e posteriormente com a Junta de Freguesia da Estrela para a criação e produção de um evento equestre em Lisboa que fosse uma mostra do melhor que se faz na Feira do Cavalo da Golegã”, afirma Nuno Melo. A R2M foi responsável pela “angariação de patrocínios e gestão dos bares e food trucks”, além de ter contactado a Administração do Porto de Lisboa para a cedência do Terraplano de Santos, onde se realizou o evento. A junta, diz o empresário, também lhe deve dinheiro.

No início de Outubro, acabada a feira, e vendo que Luís Newton tinha “mudado completamente de postura” e se recusava a pagar mais, André Rebelo decidiu fintar o autarca social-democrata. Foi ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e registou a marca “Feira do Cavalo de Lisboa” em nome da Zebra Vaidosa.

Dois meses depois, em Dezembro, Newton reagiu e contestou a acção de André Rebelo. Na reclamação apresentada ao INPI, a junta escreve que a feira foi um evento “promovido e organizado pela freguesia da Estrela em parceria com o município da Golegã e com a Administração do Porto de Lisboa (APL)”. Isso traduziu-se, lê-se no documento, num “protocolo de parceria” alegadamente assinado por estas três entidades. Quanto à Zebra Vaidosa, alega a junta, foi contratada “para tratar das questões logísticas”. E reforça: “Tão só para isso, entenda-se”.

Todos desmentem Newton

A vários fornecedores que ainda estão à espera de receber, a Junta de Freguesia da Estrela, em carta assinada pelo próprio Luís Newton, afirma que “a organização da Feira do Cavalo de 2016 regeu-se por protocolo celebrado com os parceiros do evento, designadamente a MAG Brand & Entertainment (Zebra Vaidosa)” – e que, portanto, é à empresa de André Rebelo que devem ser cobrados os valores em dívida. Ao INPI, porém, a autarquia diz outra coisa: que o protocolo foi celebrado com a APL e a Câmara Municipal da Golegã – aparentemente ilibando a Zebra Vaidosa do pagamento de qualquer montante.

Contactadas pelo PÚBLICO, a Administração do Porto de Lisboa e a Câmara Municipal da Golegã contrariam a argumentação de Luís Newton. Ricardo Medeiros, vogal do conselho de administração da APL, afirma que foi contactado em Julho de 2016 por Nuno Melo, da R2M. “Posteriormente foi realizada uma reunião no Porto de Lisboa em que estiveram presentes o presidente da Câmara Municipal da Golegã, eng. Rui Medinas; o  promotor do evento, André Rebelo e o coordenador da Feira Nacional do Cavalo (na Golegã), André Ponces de Carvalho”, além dele próprio, acrescenta Ricardo Medeiros.

Quanto ao protocolo que a junta refere, a APL é taxativa: “O referido protocolo não chegou a ser assinado”. Do gabinete de Rui Medinas, autarca da Golegã, chegou igual resposta: “Não foi assinado nenhum protocolo”. A câmara municipal acrescenta, aliás, que foi limitada a participação que teve na feira lisboeta. “Emprestámos o nosso prestígio, nome e know-how.”

Há duas semanas, o PÚBLICO contactou André Ponces de Carvalho, que todos os anos organiza a feira da Golegã, para esclarecer o seu envolvimento nesta questão. As perguntas continuam sem resposta.

Um flamingo em apertos

Além da Zebra Vaidosa e da R2M, várias outras empresas contratadas para a feira dizem-se lesadas pela junta. Nas contas de André Rebelo são 25 e até os Bombeiros Voluntários da Ajuda, que estiveram no evento de prevenção, terão ficado prejudicados. O PÚBLICO tentou confirmar esta informação, mas a corporação não respondeu em tempo útil.

Um dos empresários que se queixa de uma dívida é Simão Guerreiro, sócio e gerente da Flamingo Boémio, uma jovem empresa que presta serviços de bar. “Abrimos em Abril, a Feira do Cavalo foi o primeiro evento que fizemos. Tem sido complicado, têm sido seis meses a lutar contra tudo”, desabafa Simão, que afirma ter 15 mil euros a receber da junta da Estrela. “Tenho uma equipa em suspenso, à espera.”

Carlos Potes, dono da empresa Zona Dois Constrói, que montou “bancadas, tendas, palco e barreiras de protecção” da feira, afirma que não lhe foram pagos 3.800 euros. “A junta de freguesia, pura e simplesmente, disse que não me pagava”, queixa-se o empresário.

Junta não esclarece

Nenhum destes empresários tem contratos assinados com a junta ou com a Zebra Vaidosa, que por sua vez alega que não assinou nada com a freguesia. Porque é que organizou o evento mesmo sem um contrato?, perguntou o PÚBLICO a André Rebelo. “Pressionámos ao máximo para termos um protocolo assinado”, garante, acrescentando que só aceitou produzir a feira porque já tinha trabalhado com a junta da Estrela noutras ocasiões e nunca tinha havido problemas. Se tivesse batido o pé “nunca mais voltaria a trabalhar com a junta”, o que lhe seria altamente prejudicial, argumenta.

O PÚBLICO enviou dez perguntas a Luís Newton há duas semanas. Além de questões que visavam aclarar todo este imbróglio, perguntava-se ainda ao autarca quanto tinha custado a realização do evento aos cofres da junta e qual tinha sido o balanço financeiro do mesmo. Uma adjunta do presidente garantiu, em e-mails consecutivos, que a junta estava “a reunir os elementos todos” e que tinha “todo o interesse e disponibilidade de esclarecer cabalmente esta situação”.

A resposta que chegou na quarta-feira passada, porém, foi lacónica. “Foram integralmente cumpridas todas as obrigações e compromissos, designadamente de natureza financeira, assumidos por esta junta de freguesia, no âmbito da Feira do Cavalo de Lisboa”, lê-se. As restantes questões ficaram sem resposta e o pedido de acesso a todos os documentos foi recusado. “Uma vez que o assunto seguirá previsivelmente para uma fase contenciosa, encontramo-nos a reunir toda a cronologia, documentação e demais elementos que nos permitam pronunciar de uma forma completa”, diz o e-mail. “Assim sendo, no momento oportuno e nas instâncias próprias, a Junta de Freguesia da Estrela dará todas as informações sobre este tema, às quais V. Exas. naturalmente também terão acesso.”

A trote para os tribunais

Luís Newton pouco disse ao PÚBLICO, mas foi mais explícito na reunião da assembleia de freguesia de 9 de Fevereiro último. André Rebelo usou o tempo de intervenção do público para expor esta história rocambolesca aos deputados e o autarca respondeu com acusações em sentido contrário. “Para a junta, quem lesou foi o sr. André Rebelo e a sua empresa”, disse Newton, explicando que “o sr. André Rebelo resolveu contratar, sem autorização da junta, para além daquilo que tinha verba para fazer”.

De acordo com o presidente, o protocolo celebrado com a APL e a câmara da Golegã – que, recorde-se, ambas as entidades dizem que não foi assinado – previa que a junta entrava com 75 mil euros, a Golegã entrava com 25 mil e a APL cedia gratuitamente o Terraplano de Santos. Confrontado por André Rebelo com o facto de nem a APL nem a Golegã reconhecerem a existência do dito protocolo, Newton respondeu: “Se não houvesse nenhum entendimento entre a APL, a Junta de Freguesia da Estrela e a câmara da Golegã não havia segunda edição da Feira do Cavalo com estas três entidades”.

Ao PÚBLICO, Ricardo Medeiros, da APL, afirma que ainda não teve “nenhum contacto acerca da possibilidade de o evento se voltar a realizar este ano”. Também a autarquia da Golegã ainda não recebeu tal proposta, garante.

Na reunião da assembleia de freguesia, Luís Newton disse que André Rebelo “tem fomentado irresponsavelmente a ideia de que cabe à junta de freguesia fazer pagamentos por contratos que a junta não celebrou” e mais uma vez sublinhou que não deve qualquer montante a quem quer que seja. “Estamos cientes da nossa razão”, disse. “Estamos desejosos de poder provar em tribunal”, acrescentou.

“As coisas que ele alegou eram todas mentira”, irrita-se André Rebelo. “Todos os fornecedores que nós contratámos foi com o aval dele”, assegura o empresário da Zebra Vaidosa, que tem um dossier com print screens de todas as mensagens que trocou com Newton através do Whatsapp, SMS e e-mails. “Ele estava a par das coisas. Nós passávamos constantemente informação.”

A mesma garantia é dada pelos responsáveis da Flamingo Boémio e da Zona Dois Constrói. “Em todas as reuniões o presidente estava presente”, afirma Simão Guerreiro. “Falávamos de orçamentos, falávamos de planos”, acrescenta. “A junta sabia de tudo”, corrobora Carlos Potes. O empresário diz que, quando foi chamado a montar as bancadas e o palco, a freguesia tinha pedido estes equipamentos emprestados à Câmara Municipal de Lisboa. “Assinei um documento da junta em como levantei e outro em como devolvi”, conta.

André Rebelo e Simão Guerreiro já apresentaram injunções (um passo essencial para cobrar uma dívida por via judicial) e o gestor da Zebra Vaidosa vai também fazer uma queixa ao Ministério Público. Este filme avança a trote, agora a caminho da barra dos tribunais. 

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