Entrevista

“O contribuinte tem de sentir que é bem tratado, mesmo se falhar uma vez”

Para a autora do livro Quanto custa pagar Impostos em Portugal?, o fisco é um exemplo de eficiência na cobrança dos impostos, mas deve ser mais proactivo: não agir apenas a posteriori, mas antecipadamente, disponibilizando ferramentas de apoio aos contribuintes e simplificando os procedimentos. Embora considere que os cidadãos sabem que os impostos são necessários ao financiamento do Estado, diz que há problema de “falta de confiança” em relação à gestão dos impostos.

PÚBLICO: O caso dinamarquês mostra que os cidadãos sentem a repercussão social dos impostos que pagam e sabem com algum grau de transparência onde está distribuída a receita. E os portugueses?
Cidália Mota Lopes: Na Europa ainda continua a ser possível distinguir os países de fiscalidade elevada, o chamado modelo nórdico – onde a relação receitas fiscais/PIB ultrapassa os 40% e aos quais associamos níveis de evasão fiscal tradicionalmente mais baixos e uma moralidade fiscal mais elevada – do modelo de países com níveis de fiscalidade mais baixa, com maiores níveis de evasão fiscal e índices de moralidade fiscal mais baixa. É neste último grupo onde se encontra Portugal. Se é verdade que os portugueses têm sentido o aumento de impostos no seu rendimento disponível, não é menos verdade que, muitas vezes, não conseguem percepcionar o seu retorno social. Por exemplo, nos países nórdicos, os cidadãos são designados em muitos documentos oficiais por contribuintes-beneficiários. Nos países do sul da Europa, os cidadãos são os contribuintes. Com a crise, os portugueses estão mais conscientes de que não há direitos sem deveres, por isso, não há Estado social sem impostos. O processo de educação fiscal passa sucessivamente por três fases: a consciencialização fiscal da sociedade; o dever de pagar impostos; e o direito de conhecer e acompanhar a aplicação dos seus impostos. Penso que, em Portugal, falta investir mais nesta terceira fase, isto é, os portugueses deveriam participar mais na aplicação dos seus impostos.

Por que nos falta uma certa "identificação" entre o contribuinte e o fisco?
É acima de tudo uma questão cultural que, em parte, remonta ao tempo das invasões francesas. Por exemplo, um cidadão português refere-se ao Estado como “eles”, enquanto um cidadão dinamarquês refere-se ao Estado como “nós”. Pegando na forma como me fez a pergunta, em vez de me questionar sobre o grau de identificação dos cidadãos portugueses com o Estado, questiona-me sobre o dos contribuintes com a administração fiscal. Ainda nos vemos muito só como contribuintes e não como como contribuintes-beneficiários.

A que se deve esta diferença?
O imposto é um fenómeno social que reflecte a história, a economia, a política, a cultura e a religião de um país. Assim, trata-se aqui de contrapor, por exemplo, a cultura latina com a cultura nórdica, a religião católica com a religião protestante, e fazer repercutir isso na relação do Estado com os cidadãos ou na relação da administração fiscal com os contribuintes.

Como é que isso se reflecte no comportamento e na forma como somos mais ou menos permeáveis com a evasão fiscal?
A teoria tradicional da evasão, assente nas penalidades, continua a ser o suporte para explicar o fenómeno da evasão, mas não é a única. Há outros factores, entre os quais destaco o comportamento dos pares (“toda a gente faz isto”) e a confiança nas instituições públicas, os quais explicam a moralidade fiscal dos portugueses. A palavra “moral” deriva do latim mores e que significa “relativo aos costumes”. Somos mais permeáveis em relação à evasão e fraude pois “se toda a gente faz isto não há problema” ou “enquanto o crime não for descoberto, não me confesso”. Nos últimos tempos de crise e agravamento de impostos, estamos menos tolerantes para com os contribuintes evasores. Há uma melhor percepção de que mais incumpridores significa mais impostos para os cumpridores.

Os contribuintes portugueses têm confiança na máquina tributária?
Portugal tem um nível de moralidade fiscal baixo, quando comparado com outros países (Dinamarca, por exemplo), sendo que é a confiança nas instituições públicas, neste caso a falta dela, o factor que mais explica o valor reduzido de moral tributária dos portugueses.

Como fomentar a participação "cívica", aumentar o nível de confiança dos cidadãos na AT?
O cidadão-contribuinte deve ter a percepção de que usufrui dos benefícios públicos. Em Portugal, a minha convicção vai no sentido de que os contribuintes têm noção de que os impostos são necessários ao financiamento do Estado (de outra forma não assistiríamos tão pacificamente a cada aumento de impostos). O problema coloca-se na falta de confiança na gestão dos seus impostos, questão mais complexa em tempos de políticas de austeridade. Por exemplo, em alguns países nórdicos, os contribuintes são chamados a pronunciarem-se sobre como gostariam de ver os seus impostos aplicados e entregam em caixas nas repartições do fisco notas com as suas preferências (mais educação, mais saúde, mais acção social...). Entre nós, a prática dos orçamentos participativos vai no bom sentido. Em segundo lugar, é importante diferenciar o tratamento fiscal dos contribuintes, de acordo com o seu perfil, mais ou menos cumpridor. Deve ser o não cumpridor a sentir mais “as represálias” do não cumprimento fiscal. Não devem ser todos tratados como iguais, quando são diferentes.

Temos assistido nos últimos anos a uma maior agressividade da máquina fiscal para aumentar a cobrança coerciva…
A Autoridade Tributária tem sido um exemplo de eficácia e eficiência no processo de cobrança de impostos, no contexto europeu. Têm-se feito progressos notáveis na desmaterialização do cumprimento das obrigações fiscais, com a consequente poupança de recursos (humanos, monetários e de tempo), para os contribuintes e para o Estado. O sistema inovador e-factura permitiu um conhecimento prévio e mais atempado da situação fiscal dos contribuintes por parte da Autoridade Tributária, o que conduziu a maior rapidez na sua actuação, evitando muitas situações de prescrição da dívida fiscal. As máquinas ainda não substituem as pessoas e, por isso, humanizar a máquina fiscal, na era das novas tecnologias, passa por criar uma cultura de uma instituição mais proactiva, user-friendly, agindo não só a posteriori, penalizando os contribuintes incumpridores, como preventivamente, disponibilizando ferramentas de apoio aos seus “clientes”, os contribuintes, através de mais informação (ajudas online, por exemplo), bem como de uma maior simplificação no processo declarativo de cumprimento fiscal voluntário. A informática é muitas vezes cega, mas a fiscalidade não o pode ser. Basta pensar nas chamadas "penhoras electrónicas"…

É notório que há mais pessoas a pedir facturas nos cafés, no pequeno comércio, nos serviços do que se via há quatro/cinco anos. Mudámos a mentalidade como olhamos para o combate à evasão fiscal?
Claro que sim. Hoje, não somos tão tolerantes em relação à mentalidade “deixa lá, toda a gente faz isso”. Se todos pagarmos, pagamos todos menos. A crise fez despertar este sentimento. Mas é de facto verdade que as pessoas pedem mais facturas não só porque o fisco cruza informação e a probabilidade de se ser descoberto é maior, como ainda porque o “Peça a sua factura”, slogan já introduzido em governos anteriores, agora proporciona aos contribuintes vantagens fiscais (deduções ao IRS, Factura da Sorte). Estas medidas são muitas vezes olhadas, pelos contribuintes, como uma recompensa positiva ao cumprimento fiscal. Porém, não podemos esquecer os seus custos, que se prendem com um excesso de big brother fiscal e de custos burocráticos e de contexto.

As administrações tributárias na Europa têm procurado lançar mecanismos semelhantes para aumentar a eficácia da cobrança. Onde encontramos pontos de contacto e de maior diferença entre a máquina fiscal portuguesa e a dinamarquesa?
Em Portugal as receitas fiscais têm aumentado significativamente, em resultado do reforço de medidas de combate à fraude e evasão fiscais e da penalização dos cidadãos no caso de não cumprirem com as suas obrigações. Segundo os dados da execução orçamental do primeiro semestre, a rubrica “outras multas e penalidades diversas” cresceu 88%, o que revela um Estado e uma autoridade tributária menos tolerante e mais agressiva com os cidadãos e os contribuintes. A administração fiscal portuguesa age, assim, a posteriori, penalizando fortemente quem não cumpre. Penso que aqui a política deveria ir no sentido da diferenciação. Diferenciar o tratamento fiscal dos cidadãos/contribuintes é desejável. Quero com isto dizer que a máquina fiscal não pode tratar da mesma forma um contribuinte que falha uma vez, no limite, de forma não intencional, ou um contribuinte que está sistematicamente a falhar e a não cumprir de forma intencional. A abordagem não pode ser a mesma. A forma como se dirige a ambos, e como penaliza ambos, não deveria ser igual. O contribuinte com um perfil cumpridor tem de sentir que é bem tratado, mesmo se falhar uma vez. Deve ser o contribuinte não cumpridor a sentir o “medo fiscal” e as penalidades mais agressivas. Trata-se, por exemplo, de aferir porque motivos o contribuinte cumpridor desta vez não cumpriu e agir em conformidade.

Defende que o Estado aposte na educação fiscal. O que é possível fazer a longo prazo?
Temos muitas experiências onde podemos inspirar-nos, mas é necessário adaptá-las à realidade portuguesa. Qualquer projecto de educação fiscal deve ser constituído essencialmente por dois eixos: a sensibilização para a importância do cumprimento fiscal como contributo na prossecução do “bem comum”, apostando na dicotomia contribuinte/beneficiário e, por outro lado, a reintrodução no ensino básico de uma área de formação cívica, de carácter obrigatório, a qual contemple um módulo de educação financeira e fiscal.

O que é que os partidos e o próximo Governo podem fazer em relação a isto?
Por exemplo, começar por analisar as experiências estrangeiras que tiveram êxito e estudar a forma de adaptá-las à realidade portuguesa; ou promover um protocolo de cooperação entre o Ministério das Finanças e o Ministério da Educação por forma a introduzir uma acção global e concertada.

A SKAT dinamarquesa lançou-se nas redes sociais. Está presente no Facebook e no Instagram. Estamos preparados para dar esse passo?
A verdade é que o mundo está em constante mudança e o sistema fiscal tem de acompanhar essa mudança. No caso do sistema fiscal português, penso que é preciso um processo de preparação e consciencialização, social e fiscal, de mentalidades. Actualmente, já existem muitas bases de dados com o perfil completo do nosso quotidiano, sem que a maioria de nós o suspeite (empresas privadas, tais como as entidades bancárias ou os supermercados, por exemplo). A questão de fundo passa por saber em quem confiamos mais. No banco? Ou na administração fiscal? Na Dinamarca, a SKAT é uma marca de grande confiança dos cidadãos, o que é um bem intangível valioso no processo de cobrança de impostos.