Mandar para estrangeiro deve ser “último recurso”. Podemos chegar a 1500 camas de cuidados intensivos

Cerca de 30% das pessoas internadas em cuidados intensivos têm menos de 60 anos, 12% têm menos de 50 e parte destes doentes não têm patologia significativa, avisa o presidente do colégio de especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, José Artur Paiva.

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Paulo Pimenta

Este vai ser um “trimestre de purgatório” nas unidades de cuidados intensivos, antevê José Artur Paiva, presidente do colégio da especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos. Numa altura em que o número de doentes com covid-19 em estado crítico que estão internados em cuidados intensivos já ultrapassa os 850, o director do serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São João (Porto) defende que ainda é possível abrir mais camas em todo o país e chegar até às 1500, para todas as patologias, mas avisa que é preciso fazer isto já porque o impacto da redução dos novos casos demora entre uma a duas semanas a reflectir-se nestas unidades de elevada complexidade. O médico, que faz parte da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Medicina Intensiva, advoga três tipos de intervenções, antes de se pensar em transferir doentes para o estrangeiro: a activação máxima dos planos de contingência em todos os hospitais, a cessação da actividade cirúrgica não prioritária e prioritária e o reforço do transporte regional dos doentes em estado crítico.

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Este vai ser um “trimestre de purgatório” nas unidades de cuidados intensivos, antevê José Artur Paiva, presidente do colégio da especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos. Numa altura em que o número de doentes com covid-19 em estado crítico que estão internados em cuidados intensivos já ultrapassa os 850, o director do serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São João (Porto) defende que ainda é possível abrir mais camas em todo o país e chegar até às 1500, para todas as patologias, mas avisa que é preciso fazer isto já porque o impacto da redução dos novos casos demora entre uma a duas semanas a reflectir-se nestas unidades de elevada complexidade. O médico, que faz parte da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Medicina Intensiva, advoga três tipos de intervenções, antes de se pensar em transferir doentes para o estrangeiro: a activação máxima dos planos de contingência em todos os hospitais, a cessação da actividade cirúrgica não prioritária e prioritária e o reforço do transporte regional dos doentes em estado crítico.

Em Dezembro passado, já previa que Fevereiro ia ser um mês “horribilis” para a medicina intensiva. Como chegamos a este ponto?

Não é uma surpresa. Houve um aumento significativo da circulação das pessoas antes do Natal, na época natalícia houve determinações para um significativo desconfinamento e liberalização dos contactos, e desde meados de Dezembro que sabemos que há variantes novas a circular com uma transmissibilidade muito significativa. Estes factores faziam antever um aumento do número de casos e [como consequência] um aumento de hospitalizações e de internamentos em unidades de cuidados intensivos [UCI], além de óbitos. O grande determinante do aumento do número de mortes é o aumento da transmissão. Se o vírus ganhar invasividade e virulência, se provocar doença mais grave, aumenta a taxa de letalidade. Era expectável que fossemos ter um mês de Janeiro e de Fevereiro de grande dificuldade. A isto somou-se uma sucessão tardia e gradualista de confinamento e em pandemia ser precoce é muito importante. Quando estamos a lidar com um fenómeno que é potencialmente exponencial, a precocidade é o factor principal do sucesso.

Então este vai ser um “trimestre de purgatório”, como previa?

Chamei-lhe trimestre de purgatório porque é uma imagem que concilia a da gravidade da situação com a de esperança. Temos a vacina, mas é preciso ter consciência de que a vacina apenas lá para o Verão terá o primeiro efeito significativo, que é o de reduzir formas graves de doença de maneira expressiva. E só no fim do Verão deveremos ter imunidade de grupo.

Mas a redução no número de novos casos que se está a verificar nos últimos dias não tem impacto nos internamentos em cuidados intensivos?

Mesmo que admitamos que vamos atingir o pico esta semana, e no Norte até mais cedo do que isso, os efeitos a nível da medicina intensiva vão demorar mais 10 a 15 dias a sentir-se e vai demorar a voltar aos níveis que tínhamos antes do Natal.

A vacinação que já está em curso e que, a partir desta semana, passa a incluir os mais idosos e as pessoas a partir dos 50 anos com doenças mais graves não vai provocar uma redução das hospitalizações?

É muito importante que a Europa, de uma forma unida, seja capaz de definir um plano de abastecimento que permita um processo de vacinação rápido e adequado. Mas estou certo que só lá para o Verão dará o primeiro efeito significativo, a redução de casos graves. Outra ideia que é preciso desmistificar é que os casos graves só ocorrem em pessoas idosas ou frágeis. Temos 30% dos internamentos em pessoas com menos de 60 anos e cerca de 11%, 12% em pessoas com menos de 50 anos e parte deste pool [conjunto] não tem patologia significativa. Esta consciência de que uma forma grave de covid-19 pode acontecer a qualquer um de nós é muito importante para que a população perceba a gravidade do momento.

Proporcionalmente há pessoas mais jovens agora nos cuidados intensivos?

Em medicina intensiva sempre notamos isso. Já na primeira onda tivemos um grupo de pessoas jovens sem patologia significativa que precisava de medicina intensiva. Até pela natureza do nosso serviço que é referência para a região Norte toda e até para fora em algumas áreas, no doente hipercrítico, temos essa visão clara de que há muita gente nova com formas muito graves. Não é novidade para nós, a idade média dos nossos doentes é de 64 anos. Portanto, não é só uma patologia do idoso.

Os dados indicam que a letalidade está a aumentar. Por que é que isto está a acontecer?

O número de pessoas que morre com o diagnóstico da doença sobre o número de casos confirmados da doença tem vindo a aumentar ligeiramente nos últimos meses. E é muito interessante porque a taxa de letalidade é diferente entre regiões, varia entre cerca de 1,2% e 2,4%. Essa variação pode ter muitas explicações, desde logo demográficas, e merece estudo. Há factores que a podem influenciar, como o da exaustão de testes. Se os casos aumentam muito e os testes não são suficientes, o denominador não reflecte a verdadeira dimensão da doença e temos um falso aumento da letalidade.

É por isso é que a positividade dos testes está a aumentar e agora ronda os 20%?

Os testes começaram a tender para um planalto, isso pode reflectir um esgotamento da capacidade da testagem. É evidente que [o aumento da letalidade] também pode significar dificuldade de acesso a cuidados. Temos que estudar a variação, a sua heterogeneidade geográfica e a tendência evolutiva e perceber quais são os factores [que explicam este fenómeno].

Isso está a ser estudado?

Espero que sim...

A ruptura dos cuidados intensivos está ou não está próxima? Qual é o limite de camas, afinal?

Partimos para isto com cerca de 600 camas de medicina intensiva no Serviço Nacional de Saúde e agora temos 1320, para doentes com covid e não covid. O número cresce todos os dias. Sabemos que fatalmente vamos precisar de 390, 400 camas para a patologia não covid. Creio que no pico desta onda teremos, mil, mil e poucos doentes [em cuidados intensivos]. Para o doente ter acessibilidade, porém, não podemos funcionar com taxa de ocupação de 100%. Ora isso quer dizer que vamos precisar de cerca de 1500 camas no SNS nos próximos dois meses. Eu defendo que é possível aumentar ainda a capacidade de resposta, à custa de um esforço sobre-humano, e é agora que é preciso fazê-lo.

Onde vamos buscar tantas camas e tantos profissionais?

A tese que tenho defendido é a de que ainda é possível a expansão à custa de um esforço quase sobre-humano dos profissionais, para evitar entrarmos no cenário da medicina de catástrofe que é algo que não está no nosso ADN. Mas essa expansão implica uma série de intervenções essenciais. Primeiro: todos os hospitais têm que ter a activação máxima do seu plano de contingência. Há hospitais, muito poucos, que não estão lá e têm que o fazer. A segunda intervenção passa por cessar toda a actividade cirúrgica electiva de prioridade normal e até prioritária, as cirurgias que ficam são apenas a urgente, a diferida, que tem que ser feita até às 72 horas, e a muito prioritária. Ora aqui há um amplo campo de melhoria. O terceiro elo passa por reforçar os sistemas de transporte de doentes.

Isto já está a ser feito?

Sim, mas vai ser preciso intensificar. Estes três elos [conduzem] a um ambiente que, dizemos em jeito de brincadeira, estabelece a ‘humanidade’ de grupo. Pensamos que é possível aumentar a resposta em cerca de 200 camas. O que quer dizer que podemos estar naquele ponto que permite evitar a ruptura total. 

Então não será necessário transferir doentes para o estrangeiro?

A minha opinião é clara: só faz sentido pensar no transporte de doentes para o estrangeiro como um último recurso. A ajuda internacional com transferência de doentes deve ser o último recurso e até pode ser uma mensagem um bocado disruptiva e desmotivadora para as equipas, se veiculada de uma forma desestruturada. 

Mas os italianos transferiam doentes num avião para o estrangeiro...

Sim, em Março, numa situação de ruptura total. Mas a França usou um sistema bastante inteligente, na mesma altura, uma vez que tinha áreas do país afectadas de forma muito heterogénea. Transferiu muitos doentes da região de Paris para a região da Normandia de uma forma organizada. 

Os privados não podem ajudar. Têm muitas camas de intensivos?

São poucas camas mas não podemos dizer que não estão a participar. Os privados estão a participar na resposta. Esta matriz é normal, não vejo aqui nenhuma guerra nem nenhum problema. Mas repito: é possível aumentar ainda a capacidade de resposta no SNS, à custa de um esforço sobre-humano, e é agora que é preciso fazê-lo.

No final de Novembro passado, a percentagem de doentes a partir dos 80 anos nas UCI era superior a 8%, em 18 de Janeiro era 4,3% e na sexta-feira passada era apenas de 2,3%.  Como é que se explica esta diminuição?

A resposta é: não sei. É outro dado que tem que ser avaliado e analisado e que pode ter significados diferentes. Estas novas variantes têm incidência maior nos mais jovens, isso dá um shifting [deslocação] para aquele lado. Outra coisa pode ser, eventualmente, a redução do acesso [aos cuidados].

Então a idade não é um critério para admissão nos cuidados intensivos?

A idade não é um critério. Quando decidimos se internamos ou não um doente, em pandemia ou fora de pandemia, olhamos fundamentalmente para três coisas: para a doença aguda, isto é, qual é a sua gravidade e o seu prognóstico, o seu grau de reversibilidade. Se for tão grave que é irreversível, não faz sentido provocar sofrimento sem nenhum benefício. Olhamos para as comorbilidades, as outras doenças, e muitas vezes as pessoas têm doenças que estão num curso fatal. Às vezes a doença aguda é apenas um epifenómeno. Uma coisa que se verifica muito é o de pessoas muito fragilizadas com doenças crónicas, por exemplo com neoplasias, em que uma infecção é a estocada final. O terceiro elo para que olhamos é o estado funcional da pessoa, a que, com um anglicismo, chamamos a fragilidade, o seu grau de funcionalidade, tanto do ponto de vista cognitivo como muscular. Se sei que vou precisar de ter a pessoa em coma induzido, sedada durante quatro semanas, ligada a uma máquina, isso implica uma capacidade física de recuperar. Isto não tem a ver com a idade. Há pessoas com 80 anos e que têm uma capacidade muito grande de recuperar. Agora, pergunta-me se há uma relação directa [com a idade]? Claro que é mais provável uma pessoa estar mais fraca aos 80 anos do que aos 20. Mas a idade não é critério. Temos doentes no nosso serviço desde os 18 aos 100 anos. E a ética não muda com a pandemia, daí que seja vital que não se chegue à medicina de catástrofe. 

Mas o colégio da especialidade de Medicina Intensiva da OM emitiu um parecer sobre esta matéria em Novembro.

Em 15 de Novembro o colégio da especialidade emitiu um texto que não tem nada a ver com a medicina de catástrofe, mas visa relembrar os princípios bioéticos de internamento e como essa matriz deve ser [executada] para que ninguém fique para trás. O texto foi feito a pensar na enorme sobrecarga de trabalho que os profissionais têm e para lhes dar tranquilidade. Quisemos relembrar que há três maneiras que nos ajudam a tomar decisões adequadas: primeiro, ouvir os doentes e os seus representantes, para perceber quais são as comorbilidades, o estado prévio, os valores do doente; segundo, a colegialidade, isto é as decisões de admissão serem tomadas em equipa com outros intensivistas e também com outras especialidades; o terceiro é o apoio nas normas clínicas e bioéticas de funcionamento. Mas o princípio desse texto é o contrário da medicina de catástrofe, é dizer que nenhum doente deve ficar para trás.

Não estão a escolher doentes, portanto?

Não, não tenho conhecimento oficial de que isso esteja a acontecer. Acho que há respostas que não estão esgotadas e temos que as convocar agora para não chegar a esse ponto. 

Temos ambulâncias suficientes para o transporte de doentes críticos?

Estamos também a trabalhar no transporte de doente crítico. A comissão está a trabalhar com o INEM para aumentar a robustez desse sistema. Como prevemos que esse transporte vai ser mais frequente, nomeadamente até no Norte do país é possível que consigamos ter uma parceria com o INEM que pode ser um ganho no pós-pandemia, para nem sempre precisar do helitransporte, podendo-se fazer transporte terrestre do doente crítico de distâncias um bocadinho maiores.