Beija-me agora antes que seja tarde

A mulher tem de ir buscar os filhos à escola; o homem segue para o trabalho. Na despedida, dois beijos. Um em cada face. Dois beijos em vez de um. E é adeus, até qualquer dia.

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Conversas em bancos de jardim, almoços em restaurantes modernos, no centro da cidade, em que é difícil identificar os ingredientes que põem nos pratos, meses intermináveis de diálogo por chat, por telefone, trocas de fotografias provocatórias ou contemplativas, partilhas de músicas, de memes, e nem um beijo. Nem um só beijo na boca.

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Conversas em bancos de jardim, almoços em restaurantes modernos, no centro da cidade, em que é difícil identificar os ingredientes que põem nos pratos, meses intermináveis de diálogo por chat, por telefone, trocas de fotografias provocatórias ou contemplativas, partilhas de músicas, de memes, e nem um beijo. Nem um só beijo na boca.

O homem é alto e solteiro; a mulher é pequena e casada. O que sentem já não conseguem esconder. Durante o almoço, as pernas tocam-se debaixo da mesa por acidente, fingem não reparar, são corteses, pouco atrevidos. As boas maneiras não são camaradas da concretização do desejo. São tímidos, por isso ninguém avança. A presença na vida do outro continua a ser apenas algo inflamável, eficaz para sessões de onanismo e de sonho, mas presencialmente suprime a vontade.

As pernas tocam-se acidentalmente. A mulher gostaria de se inclinar sobre a mesa e dar-lhe um beijo, ou de que o homem o fizesse, que tomasse a iniciativa. Gostaria que o homem lhe segurasse as mãos e as aquecesse. As mãos que usa para trabalhar, as suas mãos frias. Esquecera-se do que é a sedução com afecto. Do que é gostar de alguém sem pensar em sexo. Também em sexo, mas não só. Outros degraus antes da volúpia. Quer subi-los. Acompanhada.

Olhar para o homem fá-la lembrar-se de um lugar remoto. Riem, dizem coisas parvas, falam de coisas sérias. É bom. Sabe bem, é saudável. Entre uma gargalhada e uma garfada de arroz com ovos crus, e vá-se lá saber que mais misturado no prato, a mulher tem medo. Receia ter encontrado um homem bom. A ideia de refazer a vida, de encontrar novamente a felicidade, causa-lhe ansiedade. Aprendeu cedo que a alegria e o amor não duram, que estão sempre condenados, como a vida, a ter um fim.

Terminam mais uma refeição saudável num restaurante da moda. Repara como é bonita a forma como o homem se levanta da mesa para ir pagar a conta. Tão elegante. O tronco ligeiramente inclinado, as pontas do blazer de linho escuro, antes impecável, desalinhadas e pendentes. O homem e a mulher levantam-se e preparam-se para ir à vida; cada um à sua. Ainda não têm uma que seja dos dois. Não sabem se algum dia terão. Partilham apenas algumas cenas nos episódios de uma série de qualidade com várias temporadas. Talvez um dia cheguem a protagonistas, não se sabe.

A mulher tem de ir buscar os filhos à escola; o homem segue para o trabalho. Na despedida, dois beijos. Um em cada face. Dois beijos em vez de um. E é adeus, até qualquer dia. A mulher caminha devagar em direcção à escola, simultaneamente idealista e apreensiva, pensando que um beijo poderia mudar a sua vida. Pensa como seria o beijo deles, na boca. Avança inebriada e absorta. Não repara no semáforo vermelho para os peões. É fatalmente atingida por uma carrinha.