A falência das elites

Depois de muitos relatos de viva voz e de um número ainda maior de notícias, quem mais desiludiu na resposta à covid-19 foram as elites. Não raras vezes, aquelas revelaram-se atrasadas face à realidade e incapazes de decidir atempada e acertadamente.

Talvez ainda seja cedo para avaliar quem se tem portado à altura dos acontecimentos. Mas cheguei à conclusão, depois de muitos relatos de viva voz e de um número ainda maior de notícias, que quem mais desiludiu na resposta à covid-19 foram as elites – sobretudo numa fase inicial, aquela em que uma actuação enérgica era especialmente crítica. Não raras vezes, aquelas revelaram-se atrasadas face à realidade e incapazes de decidir atempada e acertadamente. Dado o seu estatuto e poder, essas pessoas ou entidades tiveram um impacto desmesurado na evolução dos acontecimentos.

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Talvez ainda seja cedo para avaliar quem se tem portado à altura dos acontecimentos. Mas cheguei à conclusão, depois de muitos relatos de viva voz e de um número ainda maior de notícias, que quem mais desiludiu na resposta à covid-19 foram as elites – sobretudo numa fase inicial, aquela em que uma actuação enérgica era especialmente crítica. Não raras vezes, aquelas revelaram-se atrasadas face à realidade e incapazes de decidir atempada e acertadamente. Dado o seu estatuto e poder, essas pessoas ou entidades tiveram um impacto desmesurado na evolução dos acontecimentos.

Atentemos na Organização Mundial de Saúde (OMS). A 30 de Janeiro, quando havia já certezas de que a covid-19 era altamente contagiosa e, portanto, de que uma vez alastrada a outros países se tornaria de muito difícil controlo, a OMS optou por recomendar aos Governos que não impusessem restrições de viagens devido ao potencial impacto negativo no comércio e na economia. Como se veio a verificar, tais medidas vieram dias mais tarde a ser necessárias e a generalizar‑se. Esta atitude despreocupada ou mesmo negligente contrasta com a da Coreia do Sul e justifica os excelentes resultados deste país na contenção e mitigação da epidemia. A Coreia do Sul iniciou logo a 3 de Janeiro o controlo de todos os indivíduos provenientes de Wuhan, recorrendo inclusive à quarentena obrigatória quando tal se justificasse. Entre muitas outras medidas, esse controlo foi aumentando progressiva e eficazmente sobretudo a partir do primeiro caso confirmado de covid-19 no país a 20 de Janeiro.

A Europa não foi imune à incúria da OMS nem à sua própria presunção. Ao contrário da Coreia do Sul e de outros países Asiáticos, que conservavam viva a memória da SARS (a qual poupou o velho continente), a Europa assumiu tratar-se de mais um ‘falso alarme’ e foi apanhada completamente desprevenida. Já a China tinha imposto um cerco sanitário em várias cidades de Hubei (desde 23 de Janeiro), a Europa continuava a permitir voos de passageiros oriundos de e em direcção àquela região (a Itália adoptou restrições a 31 de Janeiro, Portugal a 9 de Março e a União Europeia como um todo a 17 de Março). Quem sabe quantas mortes podiam ter sido evitadas com um controlo apertado e direccionado nos aeroportos?

Portugal inscreve-se entre casos de negligência extrema como o dos Estados Unidos, Reino Unido ou Brasil (para não falar de Itália e Espanha), e outros de louvável zelo como o da República Checa. Também por cá as elites revelaram carência de cultura de precaução. Portugal devia ter reagido mais cedo controlando fronteiras e aeroportos, reduzindo ao máximo potenciais focos iniciais de infecção, mas em boa hora soube o primeiro-ministro arrepiar caminho contrariando o inenarrável parecer do Conselho Nacional de Saúde, o qual como se sabe preconizava a manutenção das escolas abertas. (Ninguém conhecia este órgão de consulta, o que é natural a julgar pela penúria de actividades descritas no relatório de actividades de 2018, o mais recente disponível online, e pelas míseras quatro notícias publicadas no seu site em 2019.)

O percurso do Presidente da República foi um pouco mais demorado que o de António Costa mas partilha com ele algumas semelhanças. Escudou-se primeiramente numa quarentena bizarra, a qual apenas pode ser compreendida como uma compensação por comportamentos de forte contacto social ao arrepio das recomendações da Direcção-Geral da Saúde e, talvez, como uma excessiva cautela no sentido de ganhar tempo para perceber em que direcção corriam as águas. Felizmente, assim que se tornou indiscutível que era necessário agir com veemência, e à semelhança do que já havia sido feito por vários outros países Europeus, o Presidente soube declarar o estado de emergência e tornar-se assim num factor decisivo no controlo da epidemia.

Existem ainda evidências anedóticas de posturas negligentes por parte de elites não decisoras. Ricardo Araújo Pereira parodiou a covid-19 por diversas vezes (tanto no “Governo Sombra” como no seu novo programa na SIC) e Pacheco Pereira, um conhecido epidemiologista (!) da “Circulatura do Quadrado”, agora na TVI, achou conveniente afirmar que o confinamento estava a ser aplicado com excesso de zelo.

Ao mesmo tempo que as nossas elites mostravam dificuldades em compreender a dimensão do que estava para vir, a sociedade civil apresentava excelentes exemplos de precaução e entreajuda. Multiplicaram-se iniciativas de voluntariado e lançou-se a 3 de Março uma petição que exigia o encerramento de estabelecimentos de ensino e de espaços culturais e de lazer, entre outros (ou seja, duas semanas antes de ser declarado o estado de emergência!).

Não quero de todo descartar dados que pareçam contrariar a teoria central deste texto. Se o faço é apenas por economia de espaço e para lhes poder dedicar atenção numa próxima ocasião. Mas, tendo em conta a responsabilidade acrescida de quem tem poder – seja decisor, seja de influência – creio que a confiança que depositamos nessas pessoas ou entidades por inerência das suas funções as obrigaria a adoptar uma postura mais previdente.