As botas rudes

As botas rudes pararam no tempo. São iguais. Só lhes falta o sebo.

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adriano miranda

A manhã trouxe o sol. No largo da feira, agora mais organizado, as coberturas brancas estendem-se a perder de vista. Gente e mais gente. Há quase de tudo. Roupa, sapatos, cobertores, alfaias, flores, árvores, galinhas, frutas, pomadas para os inchaços e queimaduras, e frango de churrasco. No labirinto dos corredores improvisados, uma pequena multidão compra o que pode. Agasalhos para o Inverno, forquilhas para o estrume, árvores para os pomares. Numa tenda com prateleiras construída a preceito com caixas de sapatos, umas botas rudes, à antiga, fizeram-me recuar 40 anos.

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A manhã trouxe o sol. No largo da feira, agora mais organizado, as coberturas brancas estendem-se a perder de vista. Gente e mais gente. Há quase de tudo. Roupa, sapatos, cobertores, alfaias, flores, árvores, galinhas, frutas, pomadas para os inchaços e queimaduras, e frango de churrasco. No labirinto dos corredores improvisados, uma pequena multidão compra o que pode. Agasalhos para o Inverno, forquilhas para o estrume, árvores para os pomares. Numa tenda com prateleiras construída a preceito com caixas de sapatos, umas botas rudes, à antiga, fizeram-me recuar 40 anos.

Era ali. Todos os sagrados anos. Sempre no mês de Setembro. Eu e o meu avô na grande feira. Eu gostava de ver os bois e as vacas. Ouvir o regatear. As cabras e os pintainhos. Pequenos como eu. Depois do mata-bicho do meu avô e da Laranjina C que eu bebia com gosto, sentava-me num banco de madeira e calçava as botas rudes. Todos os anos as botas iam acompanhando o tamanho dos meus pés. As botas para o Inverno. Uma deliciosa oferta do meu avô que ajudava nos salários parcos dos meus pais.

O meu avô era o meu companheiro. Andava sempre com ele. Não sei qual foi o último ano que deixámos de ir à feira. Que deixei de usar as botas rudes. Muita falta me fizeram. Foi no Natal que o meu avô se despediu. Ele não queria. Gostava da vida. Mas de tantas lutas que venceu, essa perdeu. A luta pela vida.

Deitei-me a tentar não ouvir o sofrimento do meu avô. E tive um desejo. Um desejo que ainda hoje me persegue. Um sentimento de culpa. Desejei que o meu avô morresse. O homem que eu amava. Desejar-lhe a morte. O seu sofrimento era desumano. Desejar-lhe a morte era uma prova de amor. Adormeci. Às seis e meia senti uma festa na cabeça. Uma voz baixa. O avô morreu.

Foi no Natal. As luzes da árvore ainda piscavam. O silêncio era fundo. As lágrimas iam caindo. O Jaguar, o cão, uivava. Fui ver o meu avô. Deitado na cama, com as mãos sobre a barriga, já não olhava para mim. Agora só eu o podia ver. Tinha já o fato escuro vestido, a gravata apertada e os sapatos pretos calçados. Nunca o tinha visto assim vestido. A camisa branca e as calças de sarja ficavam-lhe melhor. A seu pedido os sinos não tocaram. O caixão não teve cruz de Cristo. Nem velas. Só flores e saudade.

O seu último desejo não se concretizou. Queria ser sepultado debaixo das laranjeiras. Onde milhares de vezes manejou o arado. Lançou toneladas de sementes à terra castanha escura. Espalhou litros e litros de água pelos pés do milheiral e do batatal. Acariciou as árvores e as videiras. Matou as pragas com sulfato de cobre. Ouviu os pássaros. Sentiu a chuva. Queimou o peito e os braços. E eu sempre ali. Aprendiz de palmo e meio. Com as botas rudes na terra lamacenta. Com a enxada na mão. Com o homem que amava.

Já passaram muitos anos desde que vi pela primeira vez o meu avô de fato e gravata. Tenho os livros dele. O automóvel dele. Fotografias. Documentos. Discursos em comícios no Verão Quente de 75. Mas o mais valioso que tenho, foi o que ele me ensinou. Não aprendi a podar nem a dar corpo ao milho. Não aprendi a amassar o pão ou a fazer o bolo-rei. Aprendi a enterrar o prego na madeira. A manejar o serrote. A construir a casota para o cão. O poleiro para as galinhas. Aprendi a ler Jorge Amado e Fernando Namora. Aprendi que a liberdade é o bem de todos os bens. Que devemos lutar sempre por ela, independentemente do ditador.

Deitado no cimento com o céu transformado em parreiras de vinho americano, li pela primeira vez Os Capitães da Areia, de Jorge Amado. Na eira li Casa da Malta, de Fernando Namora. Na cama li Os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. E tantos outros. Os livros do meu avô. Que me fizeram homem. Que me continuam a fazer. E como hoje é necessário. O tempo das trevas ameaça voltar. Chamam-lhes populistas. Alguns até se fazem de democratas. O meu avô chamar-lhes-ia fascistas. Era um homem sábio.

Pedi à senhora de cabelos grisalhos o 41 das botas rudes. De pé, calcei a do esquerdo. A dureza do pisar mantém-se igual. A sola de borracha ainda é pregada com pregos finos. As botas rudes pararam no tempo. São iguais. Só lhes falta o sebo.

Com esforço dei duas voltas à fechadura do portão. Abriu a custo. Falta de óleo. O majestoso diospireiro está a ficar despido. As laranjeiras continuam bonitas. A pereira está velha e as macieiras continuam carregadas. A eira foi invadida por silvas. A terra é um manto de ervas. Dou dois passos. Três. Quatro. Percorro todos os cantos da terra do meu avô. Com as botas rudes calçadas. Piso as ervas.

Sei que os bisnetos um dia colocarão a placa com a sentença de morte a dizer “vende-se”. Os sugadores virão. Farão dinheiro. E depois prédios e alcatrão. Mas nunca saberão o prazer que é calçar umas botas rudes. Sentir a dureza do pisar. A força de ler um livro no meio do milheiral. Olho em volta e sinto o meu avô. A rir. Contente. A olhar para mim com as botas rudes calçadas. Sinto saudades. É dia de Natal. Uma paz invade o meu corpo. Enquanto houver caminho para se fazer, não desisto das botas rudes. Foram elas que me ensinaram a amar a liberdade.