Beijos na boca

Claro que dou beijinhos aos amigos, aos colegas, aos familiares, mas há mais de 24 meses que não beijo ninguém na boca.

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Mag Rodrigues

Não beijo ninguém há mais de dois anos. Desde que a minha ex-mulher descobriu que eu tinha uma amante e pediu o divórcio, e que a minha amante terminou comigo por não querer andar com homens divorciados. Explicou-me que era uma questão de ética, nunca queria ter dado cabo do meu casamento. Fui guloso e perdi as duas, é verdade.

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Não beijo ninguém há mais de dois anos. Desde que a minha ex-mulher descobriu que eu tinha uma amante e pediu o divórcio, e que a minha amante terminou comigo por não querer andar com homens divorciados. Explicou-me que era uma questão de ética, nunca queria ter dado cabo do meu casamento. Fui guloso e perdi as duas, é verdade.

Claro que dou beijinhos aos amigos, aos colegas, aos familiares, mas há mais de 24 meses que não beijo ninguém na boca. No início da minha vida de divorciado, estava demasiado deprimido para ir à caça, só que o tempo foi passando e ainda não me sinto apto para voltar ao ataque. O problema é que parece que perdi o jeito; bem tento lançar o bote ao mar, mas não me calha nada na rede. Já pensei se não será da barba, desde que a uso nunca mais conheci ninguém que me interesse ou que se interesse por mim. Por outro lado, todos me dizem que fico mais atraente com barba, portanto, penso que terei de excluir essa possibilidade.

Ando um bocado desassossegado e estou convencido que é por causa da falta de beijos. Não é que sinta falta de ter uma companheira ou uma amante – os meus amigos vão colmatando as necessidades ao nível do diálogo –, do que eu sinto mesmo falta é de beijar na boca. Também ando farto da pressão que me fazem os amigos sempre que nos vemos, “Então, puto, ainda não conheceste nenhuma miúda?”. Temos todos mais de 40 anos, desde que me separei e passei a viver sozinho, voltaram a tratar-me por puto como faziam no liceu. Sei bem que o fazem com carinho, por isso nunca lhes disse nada, embora me irrite sobremaneira.

Todos têm namoradas ou mulheres, sou o único encalhado. No fim-de-semana passado, fomos a uma festa de kuduro. Nem sabia que raio de festa seria, confesso que me sentia um bocado desanimado. Quando chegámos ao local, havia uma fila que dava duas voltas ao edifício. Congratulei-me por saber que a noite estava estragada. Calculei que ninguém tivesse paciência para ficar duas horas numa fila para entrar numa festa cujo nome parece uma categoria de filmes pornográficos ou uma consequência física de alguma prática de ginásio. Estava enganado, o Zé tinha posto os nossos nomes na guest list. Entrámos imediatamente por outra porta, deixando para trás a incontável bicha de foliantes. A música estava tão alta e o espaço tão cheio de gente que fui direitinho ao bar pedir dois shots de tequila para ganhar coragem. A imposição da felicidade naquele ambiente tornava-se agonizante. Senti o álcool aquecer-me de imediato a garganta e o estômago.

No pequeno palco, situado numa das extremidades da sala, três mulheres negras dançavam bastante bem e uma delas, a vocalista, além de abanar as ancas, também entoava palavras de ordem, sobretudo, sexuais. Era aquilo o kuduro? Uma mistura de rap com sungura, uma espécie de house africano. Nada mau, pensei. Ganhei um certo ânimo, não sei se por causa da tequila ou do show. Ao meu lado no balcão, um casal de jovens começou a beijar-se sequiosamente.

Desde que sinto falta de beijos parece que o mundo se uniu para mos plantar por toda a parte. Vejo pessoas aos beijos onde quer que vá. Tive vontade de chorar, juro. Não é novidade para ninguém que uma pessoa se sente ainda mais solitária quando se encontra rodeada por muitas pessoas. E assim estava eu — a ouvir kuduro numa festa bastante animada, acompanhado por uma multidão esfuziante e por um casal na marmelada. Não sabia onde estavam os meus amigos, tinha-os perdido na vinda até ao bar. Seria difícil encontrá-los no meio da confusão. Resolvi voltar para casa, mas antes fui à casa de banho. Uma rapariga na casa dos 30 estava completamente ébria encostada ao lavatório. Um tipo fazia o seu serviço num dos urinóis e ignorava a sua presença. Aproximei-me dela, perguntei se precisava de ajuda. Não respondeu, virou-se e deu-me um beijo na boca. Assim, sem mais nem menos, deu-me um demorado beijo na boca. Sabia a álcool e um pouco a azedo, mas não pude deixar de me sentir contente.